O panorama não é animador, avisam os médicos: as crianças portuguesas estão com índices de gordura elevados e, pelo menos, 5% têm fígado gordo – que se caracteriza por uma série de alterações metabólicas nas células, que podem provocar inflamação e progredir para problemas tão graves como cirrose e cancro.
“Atualmente, as crianças e os adolescentes passam o tempo todo sentados, agarrados ao telemóvel ou à consola de jogos, e não fazem exercício físico. Isto é muito grave, porque o exercício físico tem um efeito protetor e até terapêutico”, refere Paulo Oliveira, investigador principal do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, alertando para a necessidade de combater aquele que considera ser “o inimigo número um” quando se fala de fígado gordo: a sedentariedade. Até porque, nota o especialista que coordena o projeto Foie Gras (dedicado ao combate desta doença), “é possível normalizar alguns casos de fígado gordo não alcoólico ao fim de alguns meses de exercício físico e controlando os hábitos alimentares”. Mas, como raramente apresenta sintomas nas suas fases iniciais, a doença é muitas vezes detetada demasiado tarde.
Risco de transplante
Ao todo, no País, mais de um quarto dos portugueses têm fígado gordo não alcoólico, mas é sobretudo o número crescente de crianças e adolescentes afetados que está a preocupar os especialistas. De tal forma que é já a doença hepática crónica mais prevalente em idade pediátrica. E o problema pode ter impacto ao longo da vida. É que a gordura em excesso no fígado, ao poder originar cirrose e cancro, obriga, muitas vezes, a que seja feito um transplante deste órgão na idade adulta.
Segundo explicam os médicos, é normal que o fígado tenha alguma gordura, mas quando constitui mais de 5% da sua massa, considera-se que a doença se instalou.
O vício do açúcar
É através dos alimentos que a gordura em excesso se forma no fígado. E, neste capítulo, o grande culpado é o açúcar, garante Ermelinda Santos Silva, gastrenterologista pediátrica do Centro Materno-Infantil do Norte. “A causa principal é a dieta com elevado teor em frutose”, sendo que a maior fonte de frutose na dieta moderna é o açúcar (sacarose), os sumos concentrados e o xarope de milho com alto teor em frutose, usado largamente pela indústria alimentar como adoçante. Se consumida em grande quantidade, a frutose “é transformada em gordura no fígado e vai produzir doença”, explica a médica, que é também docente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, acrescentando que o fígado gordo “é a manifestação hepática da síndrome metabólica” constituída por insulinorresistência (que progride para diabetes), dislipidemia (concentração excessiva de gordura no sangue) e doença cardiovascular.
Pode, no entanto, também afetar pessoas que não são obesas nem têm excesso de peso, mas cuja dieta é rica em açúcares. “Na verdade”, adverte Ermelinda Santos Silva, “as alterações produzidas pelo consumo excessivo de frutose são em tudo semelhantes às que produz o consumo excessivo de álcool de forma continuada”.
Prevenir com alimentação
Metade das crianças obesas tem já alterações no fígado. Mas a situação pode ser revertida com hábitos alimentares mais saudáveis, garantem os médicos
Paulo Oliveira corrobora: os açúcares que comemos em excesso vão acabar no fígado convertidos em gordura. “Quando se fala em fígado gordo, há duas tendências: a primeira é pensar-se que é o fígado gordo do tio que bebe muito álcool e estraga as festas de Natal. A segunda é pensar-se que quem come muita gordura é que tem o fígado gordo. Mas isto não é verdade”, alerta o investigador, lembrando que podem existir “casos de pessoas que têm uma alimentação rica em gordura mas poderão não desenvolver um fígado gordo no estádio da doença já muito grave”.
Uma bomba-relógio
Na opinião do presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia e diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria), Rui Tato Marinho, “Portugal é um dos piores países em termos de obesidade infantil porque as crianças comem mal”. Ou seja, “comem muitos bolos, fast-food, em grandes quantidades e fazem pouco exercício físico porque estão muito agarradas aos ecrãs”.
E o fígado gordo é mais prevalente nas crianças e nos jovens obesos. Henedina Antunes, investigadora e gastrenterologista pediátrica do Hospital de Braga, ressalva que, em Portugal, a percentagem de crianças e jovens obesos com fígado gordo é desconhecida, mas a partir de “uma base prospetiva de obesidade pediátrica que é a maior do País, com 2 022 doentes”, adianta que uma análise com dois mil doentes revelou fígado gordo não alcoólico “em 20,2% dos doentes obesos”. Paulo Oliveira afirma, por seu lado, que é possível que afete cerca de metade das crianças obesas. O chamado fígado gordo não alcoólico é uma doença multifatorial com componente genética e, embora sendo a obesidade a sua principal causa, existem outras. “Pode resultar de doenças metabólicas como a doença de Wilson, da acumulação de cobre no fígado e de alguns fármacos como o valproato de sódio (um antiepilético)”, exemplifica Henedina Antunes.
De acordo com Rui Tato Marinho, “há estatísticas que dizem que a obesidade estabilizou, que melhorou, mas, do ponto de vista global, é um problema muito preocupante”. “Estamos com maus índices”, avisa. O clínico considera esta situação alarmante e lembra que “as crianças que são gordas aos 10, 11 anos, habituam-se a um determinado padrão”, sendo que, diz, “90% a 95% dessas crianças não vão emagrecer, já que as pessoas muito obesas raramente conseguem perder peso de forma sustentada”. O problema, adianta ainda o médico, é que, quando as crianças tiverem mais 20 ou 30 anos, vão sentir todas as consequências da obesidade muito cedo – hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares. “Até se costuma dizer que as consequências da obesidade são um monstro económico”, alerta.
Em Portugal, a publicidade a alimentos com elevado teor de açúcar, sal e gordura, como chocolates, barras energéticas e refrigerantes, está proibida desde outubro num raio de 100 metros das escolas, bem como em programas infantis de televisão e rádio, mas a medida é insuficiente. Os bons hábitos alimentares deveriam começar em casa, local onde muitas vezes se inicia todo o processo de adição. “Atualmente, a venda de álcool é proibida a menores de 18 anos, mas as bebidas açucaradas e outros alimentos ricos em açúcar são servidos ao pequeno-almoço das nossas crianças sem qualquer consciência de que o seu consumo excessivo tem as mesmas consequências para a saúde que o álcool. A única diferença é que o açúcar não embriaga, o que o torna ainda mais perigoso”, constata Ermelinda Santos Silva.
Nos EUA, o fígado gordo não alcoólico “é atualmente a segunda causa de transplante hepático nos adultos e estima-se que, nos próximos anos, passe a ser a primeira causa”, refere ainda a especialista.
O bioquímico Paulo Oliveira vai mais atrás para explicar a aquisição de maus hábitos alimentares, referindo estudos em animais e seres humanos: “São mães obesas que cometem excessos alimentares durante a gravidez. Mas a subnutrição durante a gravidez também leva a alterações no fígado do feto que durante a vida adulta predispõem a pessoa a um maior risco” de desenvolver síndrome metabólica, incluindo fígado gordo não alcoólico. No entanto, garante, “a relação mais direta é que, se as mães já são obesas, em casa têm uma alimentação deficiente que vão ter tendência para transmitir aos filhos”. Ou seja, nota, “há uma parte de transmissão intrauterina mas também há todo um estilo de vida que é passado”.
Mónica Pitta Grós Dias, nutricionista no Centro da Criança e do Adolescente do Hospital CUF Descobertas e no Hospital Dona Estefânia, recomenda, por isso, “um plano nutricional saudável que privilegie a gordura de boa qualidade, nomeadamente o azeite, o consumo de hortícolas – hortaliças e legumes –, a restrição de produtos alimentares processados como o pão de longa duração, as bolachas, os snacks.Além disso, avisa, “o facto de se ficar muitas horas sem comer também dá uma sobrecarga ao fígado, depois, na refeição principal”. Daí que seja melhor fazer um plano nutricional com várias refeições. “A metabolização dos vários alimentos é mais eficaz do que se se fizer apenas três refeições por dia, uma vez que nessas refeições faz-se um consumo maior de alimentos, o que vai dar mais sobrecarga ao fígado”, explica a nutricionista.
Apesar de a situação ser preocupante, os médicos lembram que está nas mãos de cada um tomar medidas para prevenir e, em alguns casos, até reverter a situação. E essas medidas resumem-se a um conjunto de palavras que nunca é demais repetir: adoção de hábitos de vida saudáveis.