Há seis anos e meio, Manuel Faria-Blanc sofreu um enfarte, ainda não tinha feito 60 anos. Na altura, fez um cateterismo e implantaram-lhe dois stents intra-coronários. Até então, este administrador não-executivo de um banco e membro da direção da associação Apoio à Vida, não sabia que tinha as “artérias entupidas”. Passou a ter consultas regulares e exames de rotina de seis em seis meses, a tomar medicação específica e não houve mais sinais de alarme. Pelo menos até ao passado dia 21 de abril, quando saiu de casa pela primeira vez, em mais de um mês de isolamento, para ir à urgência do hospital CUF Infante Santo, em Lisboa. Entrou lá confiante de que sairia, em breve, depois de feito algum exame ao coração. Na verdade, só regressou a casa passados quatro dias, já depois de uma nova intervenção urgente.
Desde que teve o primeiro enfarte, Manuel Faria-Blanc começou a andar na passadeira, todos os dias, cerca de 45 minutos. Dois dias antes de ir à urgência, a 19 de abril, nesse momento de exercício físico sentiu uma pressão no peito. Parou, descansou e a pressão passou. Continuou bem, até sentir uma nova sensação de “dor na boca do estômago, ali meio do peito”, mas como também costuma ter refluxo gastroesofágico, que pode causar a mesma sensação, convenceu-se de que estava tudo bem.
Graças à insistência das duas filhas profissionais de saúde, uma enfermeira e uma fisioterapeuta, foi até à urgência. “Não tive um especial receio, até porque a minha filha sossegou-me bastante em relação à separação entre doentes comuns e doentes infetados com coronavírus”, explica. De imediato foi encaminhado para a área não contaminada, onde fez análises, uma tac, raio-x, eletrocardiograma e teste à Covid-19. Confirmou-se que sofreu um enfarte e que estava negativo face à doença respiratória infecciosa. Passou para os cuidados intensivos adaptados, fez um cateterismo e colocou um terceiro stent, numa outra artéria coronária, desta vez obstruída a 99 por cento.
Entretanto, Manuel continua confinado à sua residência, sem fazer grandes esforços. Mas, já voltou à caminhada na passadeira, 20 minutos, “metade do tempo, a metade da velocidade”, descreve. “É preciso ficar atento, mas não viver na paranoia de que isto pode voltar a acontecer. Tenho de superar o medo e a falta de confiança”, analisa, a poucas semanas de voltar à consulta.
Menos diagnóstico, mais mortes
O caso de Manuel Faria-Blanc é um exemplo positivo de como todas as pessoas se devem comportar, quer se esteja em estado de calamidade, quer a pandemia continue disseminada por todo o mundo. Com o aparecimento da Covid-19, os doentes fugiram dos hospitais, primeiro com medo de serem infetados e também porque a reorganização dos próprios hospitais obrigou a que todas as consultas tivessem de ser reprogramadas. “Foram conciliados dois fatores perigosos para os doentes que não estavam infetados: doentes crónicos com patologia cardiovascular medicada e assistida que não só não foram às urgências quando se sentiram piores, como não tinham as suas consultas programadas. As pessoas foram ficando recatadas em sua casa, sem ir ao hospital atempadamente e alguns descompensaram. Talvez por isso se justifique o aumento da mortalidade registado nos meses de março e de abril. Além do coronavírus houve, claramente, nos idosos – são aqueles que têm mais doenças cardiovasculares – um aumento de quatro a cinco vezes mais mortalidade neste período, explica Mário Oliveira, cardiologista.
É verdade que entre 16 de março e 14 de abril registaram-se mais 1 255 mortes em Portugal do que o esperado, tendo por base a mortalidade média diária da última década, segundo dados do Centro de Investigação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública, na Universidade Nova de Lisboa. O estudo Excesso de Mortalidade, em Portugal, em Tempos de Covid-19 contabilizou que 49% do excesso de mortes deveu-se à Covid-19, enquanto os restantes 51% morreram por causa de outras doenças. As pessoas com mais de 75 anos foram as mais afetadas com 1 030 mortes acima do esperado.
A principal causa de morte em Portugal são as doenças cardiovasculares, à frente de doenças oncológicas e da doenças pulmonares. Os problemas de saúde do coração aumentam com o avançar da idade: entre os 70 e os 80 anos há o dobro da patologia que existe entre os 60 e os 70 anos. Sendo que Portugal contabiliza mais de um terço da população com mais de 65 anos é necessário estar alerta a todos os sinais e sintomas.
A principal causa de morte em Portugal são as doenças cardiovasculares, à frente de doenças oncológicas e da doença pulmonar obstrutiva crónica
Atenção à arritmia
Para o médico especialista Mário Oliveira um dos exemplos mais flagrantes é a fibrilhação auricular. “São as pessoas com uma arritmia muito comum, que tem um impacto tremendo na qualidade vida, na morbilidade e até na mortalidade. Esses doentes têm episódios súbitos em que o coração fica a bater muito acelerado e o que costumam fazer é ir à urgência para corrigir essa arritmia. Quem ficou em casa à espera que a arritmia passasse acabou por descompensar o seu funcionamento cardíaco e apareceu no hospital já mais tarde com insuficiência cardíaca”, esclarece Mário Oliveira.
Aos 81 anos, Ivete Machado ainda chegou a tempo ao hospital, evitando um desfecho que poderia ser mais grave. Há mais de um ano que sofria desses batimentos cardíacos acelerados que lhe provocavam também perdas de equilíbrio. Chegou a cair no quintal da sua casa em Valejas, no concelho de Oeiras, perdendo os sentidos e rachando a cabeça. Continuou a tomar medicação, mas a arritmia não parava de surgir: no dia em que fez uma colonoscopia, o técnico mediu-lhe 150 pulsações por minuto.
Ivete Machado voltou a cair, sentiu-se “puxada para trás”. Estava no princípio de março quando foi à consulta com Mário Oliveira e este lhe explicou que as suas quedas derivavam da falta de oxigenação no cérebro. Com uma cirurgia marcada para dia 21 de abril, respeitou à risca todas as regras de confinamento. A sua única preocupação era que a ablação (tratamento invasivo utilizado para corrigir o ritmo cardíaco irregular, através do isolamento elétrico das veias pulmonares) não fosse desmarcada. Compareceu no hospital sempre acompanhada pela filha, ambas de máscara no rosto, e sentiu-se completamente segura. Mas, se há coisa que lhe custou após a intervenção com intervenção, em que apenas permaneceu uma noite no hospital, foi a dieta muito rigorosa de comer tudo passado e frio, que teve de cumprir nos dias seguintes. “Fiquei traumatizada e com medo de cair e bater com a cabeça e ter consequências muito piores do que a arritmia”, confessa a doente que aguarda confinada em casa pela próxima consulta, dia 25 de maio.
Voltar à rua
Nunca se deve desvalorizar os sinais que o corpo dá. Mais um exemplo: um doente teve um desmaio, a família ficou assustada, mas como demorou apenas 30 ou 40 segundos até acordar e ficar bem, não foi à urgência. “Esse desmaio podia ser o aviso de uma arritmia maligna, que se manifesta por um desmaio que passou, mas no desmaio seguinte pode ser morte súbita”, avisa Mário Oliveira.
Em Portugal, mais de metade da população é hipertensa e dentro desse grupo existem os hipertensos graves, que mesmo com medicação não conseguem ter a tensão arterial regularizada. Ao fim de alguns anos, essa hipertensão vai provocar lesões em órgãos-alvo, como sejam o coração, o cérebro, os olhos, os rins ou as artérias. “Neste tempo em que as pessoas ficaram em casa ansiosas, enervaram-se, ficaram com medo e descontrolaram-se emocionalmente, podem ter sofrido um episódio cardiovascular que não foi tratado atempadamente, podendo resultar numa descompensação cardíaca, num AVC ou numa hemorragia por rotura dum vaso, entre outras situações potencialmente graves.”
Agora, com uma ligeira permissão para desconfinar, as pessoas deviam voltar a fazer o habitual exercício de 30 minutos diários, recomendado pelos médicos. “De máscara no rosto e desinfetante no bolso, podem fazer uma caminhada num local sem aglomerado de pessoas, com toda a segurança”, aconselha o cardiologista.
Chamar o 112 em caso de:
-Dor no peito persistente, sobretudo se for associada a náusea ou a vómitos
-Boca de lado
-Falta de força num membro superior ou inferior (braços e pernas)
-Querer falar e não conseguir articular as palavras
Nunca levar o doente em carro particular, por algum familiar. Em caso de o doente ter uma paragem cardíaca apenas o INEM está apetrechado com profissionais treinados e equipamento específico para tratar as pessoas nestas situações.