Desde meados dos anos 1960, corria de boca em boca, sussurrada entre pilotos da TAP, a história do mal-sucedido “batismo de voo” de Oliveira Salazar. José Correia Guedes lembra-se de a ter ouvido na década de 1970 ao comandante Silva Soares, de quem, no início da carreira, foi copiloto durante alguns anos.
É por aqui que acedemos aos pormenores da história da única vez em que Salazar viajou de avião. O comandante José Guedes prepara-se para lançar Carlos Bleck – O herói esquecido da aviação portuguesa, que chega às livrarias no próximo dia 14, com prefácio de Jaime Nogueira Pinto, e é também autor da obra O Aviador, que vai já na 5.ª edição e que reúne dezenas de histórias divertidas que 36 anos a pilotar aviões da TAP lhe renderam. Mas, para o que aqui importa, é igualmente dono de uma raridade: o livro Histórias com Asas – Memórias dos pilotos da TAP dos tempos do hélice, escrito pelo referido comandante Silva Soares (já falecido) e editado, em 1992, pela Cooperativa dos Pilotos de Aviação Civil. Foram tão poucos os exemplares disponibilizados que uma pesquisa na Internet revelou que a obra de Silva Soares chega a custar, hoje, 70 euros.
Por e-mail, José Guedes, 74 anos, enviou à VISÃO a página, entre as 474 daquele livro, que conta os pormenores do “batismo de voo” do ditador. Era dia 27 de maio de 1966, e Salazar aceitara pela primeira vez viajar de avião, num voo Lisboa-Porto. Da Invicta seguiria para Braga, onde no dia seguinte discursaria na Biblioteca Pública da cidade minhota, na cerimónia de comemoração do 40º aniversário do golpe de 28 de maio de 1926, que instaurou a ditadura militar e abriu portas à implantação do Estado Novo.
Do relato que recebeu do colega Rodrigues Mano, comandante do voo que transportou Salazar, o autor de Histórias com Asas escreveria um texto aprimorado, digamos assim. Sob o título Experiência frustrada, começa por dizer que, “naquele fim de tarde calmo (…), o Super-Constellation CS-TLF estava pronto na Portela, para o voo TP 104 com destino ao Porto”. Mas, acrescenta, “algo de especial se passava, quebrando a rotina”. É com uma escrita colorida que o comandante Silva Soares descreve o séquito que acompanhou Salazar até junto do Super-Constellation: “Um grupo de pessoas vestidas de escuro alastrava a partir da aerogare, deslizando como uma mancha de óleo. Deteve-se junto à escada do avião. Viram-se vénias, num movimento ondulante, suave, como num ritual de fiéis num templo.”
Segredava-se que seria um teste para uma possível viagem de Salazar a Angola e Moçambique. Resultado: “Positivamente negativo!”, escreveu o comandante Silva Soares
Depois, continua, “duas ou três das pessoas vestidas de escuro subiram lentamente para bordo”. Uma delas era Salazar, claro, e uma outra o presidente da TAP, Alfredo Vaz Pinto, que o acompanhou na viagem.
“O comandante apresentou cumprimentos, ao portaló”, prossegue o texto de Silva Soares, notando que “pouco depois o avião partiu, com oito minutos de atraso ‘devido a VIP’”.
À chegada ao Porto, descreve, “o desembarque do VIP fez-se suavemente para outra mancha de pessoas vestidas de escuro, que fizeram vénias ondulantes e deslizaram lentamente para a aerogare”. Salazar, garante o comandante Silva Soares, “produziu então uma declaração em forma de desabafo, naquela voz etérea, que raramente ouvíamos, mas que ditava os destinos dos portugueses: ‘Meus senhores… tenho a dizer… que não gostei…’”.
Salazar, comenta o aviador, “tinha acedido a fazer o seu batismo de voo, para experimentar esse meio de transporte já tão vulgarizado entre os humanos”. Segredava-se, revela, que “seria um teste para uma possível viagem a Angola e Moçambique”. Resultado: “Positivamente negativo!”, exclama Silva Soares, assim mesmo, em itálico.
E, conclui, “foi a única vez em que o Dr. Salazar, para andar nas nuvens, tomou um avião…”