Enquanto esteve em Gaza como enviada especial da VISÃO História sobre o conflito entre Israel e a Palestina, que se encontra nas bancas, a jornalista Alexandra Lucas Coelho realizou esta entrevista com Basseim Naim, que ocupou, entre outros cargos governamentais, a pasta da Saúde
Há dez anos que o Hamas está no poder em Gaza, sob sanções e através de três guerras. Que balanço faz desta vossa primeira experiência governando quase dois milhões de pessoas?
Israel controla Gaza por mar, ar e terra. Segundo a lei internacional, este é um território ocupado, responsabilidade do ocupante. Que fez a comunidade internacional para implementar essa lei? Nada. Em vez disso apoiou Israel e deu-lhe luz verde para cometer crimes contra a Humanidade ao cercar dois milhões de pessoas, puni-las coletivamentente, privando-as dos seus direitos básicos, liberdade de movimento, medicamentos, gasolina, eletricidade. Não falo de forma emotiva. Quando nos referimos ao Quarteto [Diplomático para o Médio Oriente], estamos a falar da ONU, da UE, da Rússia e dos americanos. O que significa que a comunidade internacional é parte do cerco.
Portanto, fomos vítimas dos crimes da ocupação israelita e da hipocrisia da comunidade internacional. Há dez anos pediram-nos que participássemos na eleição, que aceitássemos a democracia. Qual foi o resultado? Rejeição, recusa dos resultados, cerco, embargo, boicote. Ao fim de um ano, em 2007, pediram-nos concessões para um governo de unidade. Esperávamos ser aceites pela comunidade internacional. Qual o resultado? De novo, rejeição, isolamento.
Agora, quando converso com diplomatas, digo que estamos pronto para todo o tipo de eleições, presidenciais, legislativas, e pergunto: mas vocês estão dispostos a aceitar a vontade do povo? E eles não estão. Acusam-nos de usar a democracia para conseguir os nossos fins quando são eles que querem uma democracia feita à medida, com líderes específicos, segundo os seus critérios. Temos pena. O que é que Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Palestiniana], ao fim de 20 anos a falar em paz e dois estados, conseguiu? O que é que a comunidade internacional fez para defender a sua própria visão de dois estados? Vemos a nossa gente ser morta, ser roubada, os lugares santos [islâmicos] judaizados.
Se a comunidade internacional estiver disposta a respeitar o resultado de eleições, o Hamas está pronto a concorrer e iniciar um diálogo?
Já o fizemos, estamos prontos para isso todos os dias. No novo documento [programático, apresentado em Março] isso é uma vontade definida, articulada, que o Hamas acredita em democracia, na sociedade civil.
Uma das marcas destes dez anos é a divisão interna palestiniana. Como é possível ultrapassá-la?
Esta divisão é uma mancha negra na nossa história, uma catástrofe. E o único lado que beneficia com isso é Israel. Ficam muito felizes por ver palestinianos lutarem, em vez de usarem essa energia para nos livrarmos da ocupação.
Para reconciliação e unidade há duas opções. Ir para eleições livres e transparentes, deixar os palestinianos decidir que liderança querem. Ou sentar à mesa e encontrar um terreno comum: podemos escolher corpos regionais ou internacionais para supervisionar uma base nacional.
A última vez que se discutiu um governo de consenso, acordou-se que representaria todos. E o que temos [na Autoridade Palestiniana] é um governo só para a Cisjordânia, sem levar em conta os problemas e sofrimento das pessoas em Gaza. Eles não querem lidar com Gaza ao mesmo nível. Gaza apenas pode escolher entre ser excluída e sofrer — especialmente nestas últimas semanas, com os cortes de eletricidade —, ser considerada uma entidade rebelde; ou levantar as mãos, bandeira branca e desistir de tudo, resistência, projeto político, estar pronta para tudo o que eles quiserem. Porque é que não há outras escolhas? Podemos ir ter com a população e pedir-lhe que decida. O povo sabe quais são os seus interesses, ninguém o pode acusar de ser estúpido e suicida. Nas eleições de 1996 e 2006 as pessoas distinguiram entre quem era bom para o município, o parlamento e a presidência. Então vamos para eleições gerais, reabilitar todo o sistema. Porque todo o sistema está corrompido, expirou. Aliás, não há sistema, há uma pessoa. Mesmo membros do Conselho Executivo da AP em Ramallah não têm ideia do que está a acontecer.
Uma pessoa, Mahmoud Abbas?
[acena].
Nestes dez anos apareceu o ISIS. Está perto, no Sinai. Qual o impacto dessa presença aqui?
Primeiro, ISIS não é Islão, não representa o Islão, é produto de um contexto criado pelo Ocidente. Claro que em cada sociedade há radicais mas isso foi multiplicado. No começo dos anos 1990 houve eleições na Argélia, a França não gostou do resultado, fez tudo para reprimir a vontade das pessoas. Resultado: movimentos como Al Qaeda. Em 2006 houve eleições livres em Gaza, resultado: cerco, boicote. Egito, 2012, eleições livres, resultado: golpe de estado apoiado pela comunidade internacional. Nem que eu passe 24 horas a convencer as pessoas de que a Europa quer democracia, para elas isso significará zero. Isolamento, cerco levará a radicalização, extremismo, aqui como noutros lugares.
Segundo, sabemos que a nossa luta é só com a ocupação, independentemente da sua religião. Estamos a falar de um conflito político, não religioso, e não devemos deixar ninguém desviar-nos desse objetivo. Terceiro, sabemos que há diferentes grupos, manipulados por vezes por Israel, por vezes por outros grupos, incluindo palestinianos, para criar problemas em Gaza. Matar alguém aqui, ameaçar alguém ali. Sabemos que lançaram rockets contra Israel para criar uma atmosfera para uma nova guerra.
O Hamas agiu contra isso?
Sim. Não somos misericordiosos com este fenómeno. Começámos a lutar contra ele ainda antes do ISIS ter sido criado. Por exemplo, em 2008, quando um grupo tentou fundar um emirado islâmico em Rafah [sul da Faixa de Gaza]. Não podemos permitir que esse fenómeno cresça aqui. Nos últimos anos prendemos alguns deles. Houve uma decisão clara de o fazer, em alguns momentos muito agressiva. Porque isto é como lidar com um cancro. E eu sou cirurgião, sei o que significa cirurgia de cancro. Às vezes temos de ser muito agressivos, não respeitamos as regras normais, porque se trata de algo muito perigoso. Não podemos aceitar que nenhum palestiniano seja atingido por isto, seja muçulmano ou cristão, homem ou mulher, com hijab ou sem. Comparando com os países à volta, a situação em Gaza é a melhor no controle deste fenómeno [ISIS].
Há queixas em Gaza quanto a opressão, falta de liberdade de expressão, pessoas a serem presas, torturadas. Algumas pessoas atribuem isto à ala militar do Hamas. Qual a sua resposta?
Não quero negar que houve erros. Mas nos últimos 10 anos estive em quase todos os governos, e posso dizer que isso nunca foi uma política deliberada. Houve erros da polícia, aqui, das facções, ali, mas não uma política.
Tenho muito boas relações com os grupos de direitos humanos. Cem por cento das queixas têm uma resposta ou uma solução. Todo o tempo houve canais abertos. Em alguns casos, as queixas eram falsas. Outro ponto: Abbas em 2007 pediu às pessoas em Gaza para deixaram os lugares de trabalho, então perdemos milhares de profissionais experientes. Tivemos de treinar gente que no começo não tinha ideia de direitos humanos, em alguns casos eram simples combatentes. Mas não havia opção. Portanto, no começo, sobretudo, houve erros, e em cooperação com o CICV [Cruz Vermelha Internacional), com grupos de direitos humanos, essa situação foi melhorada.
O responsável do CICV é do Senegal, e ele diz isto: uma sociedade com tanta pressão, pobreza, dificuldades, e tantas armas, como é Gaza, e as pessoas não se matam nas ruas. Este equilíbrio não é fácil. De uma comunidade de dois milhões sob pressão por 10 anos não se pode esperar uma situação ideal.
Homicídios e suicídios estão a aumentar.
Percebo que o comportamento mude. Dez anos sem eletricidade, sem emprego, com pressão, três guerras, há quem tenha perdido 15 familiares. Não estou a dar desculpas, mas não pode haver uma situação ideal aqui. E há gente na Cisjordânia ou no Egito que quer criar caos aqui, lançar rockets. Não posso ser misericordioso com quem quer criar uma guerra.
Estas queixas são de cidadãos vistos como críticos do Hamas.
Sei de casos em que se lidou com eles [críticos] de forma agressiva, sim. E há casos em que pessoas são pagas para criar caos. De novo, não nego erros. Mas ao longo destes 10 anos tentámos manter canais excelentes com os grupos de direitos humanos. E os que cometeram erros foram punidos.
Antes de terminar, gostava de dizer uma coisa aos seus leitores, à comunidade internacional, quanto ao novo documento [programático] do Hamas. É o resultado de 20 anos de trabalho, e é uma revolução. Primeiro, encarar o conflito como político, dizer que estamos a lutar contra a ocupação, que o problema não é com os judeus — porque se falamos de conflito religioso não há espaço para a lei, à partida eu vou para o paraíso, e você para o inferno, ou vice versa; mas se o conflito é político quer dizer que estamos a criar espaço para uma solução. Segundo, dizer que o Hamas acredita em democracia, eleições, sociedade civil, papel das mulheres, direitos humanos, transmissão pacífica de poder. Tudo isto é uma grande mudança se compararmos com [o programa do Hamas] há 30 anos, quando a base era religiosa. Queremos um estado civil, com gente que possa ser eleita e dispensada. Não há espaço para um estado teológico. E não temos nenhum problema com os judeus, essa tensão foi criada pelo sionismo, não pelos judeus. O último ponto no documento diz que o Hamas aceita um estado nas fronteiras de 1967 [pós Guerra dos Seis Dias], com Jerusalém como capital.
Jerusalém Leste ou toda Jerusalém?
Não é dito. Mas isto abre uma janela para um estado nas fronteiras de 1967 com Jerusalém Leste como capital, e reservando o direito de retorno [dos refugiados]. Então, reconhecer ou não o estado de Israel não é tão crucial [esse reconhecimento continua ausente do documento]. Porque estamos dispostos a aceitar um estado palestiniano que criará uma mentalidade totalmente diferente [no sentido de novos passos mais adiante]. A Grécia, membro da EU, reconheceu Israel em 1992. A Índia reconheceu em 1996. Ou seja, o reconhecimento não é uma pré-condição.
A Cisjordânia ficou cheia de colonos, difícil imaginar um estado ali. Isso significaria que os colonos teriam de sair? Qual seria a solução?
Tem de ver a coisa de outra perspectiva: demos 78% da nossa terra [Palestina Histórica], e aceitamos um [futuro] estado em 22% desse território. Portanto, [os colonos] são um problema de Israel, e responsabilidade da comunidade internacional. Não devemos pagar pela décima vez o preço dos erros da comunidade internacional. Viram Israel criar factos no terreno e não agiram. Talvez daqui a cinco anos já não haja Cisjordânia. Os detalhes podem ser discutidos, mas o Hamas aceitar um estado nas fronteiras de 1967 é um grande passo em frente.