Tom Segev é autor de uma obra de referência sobre a Guerra dos Seis Dias: «1967 — Israel, the War, and the Year that Transformed the Middle East». Esta conversa aconteceu na sua casa de Jerusalém Ocidental, a 22 de maio. Foi na guerra israelo-árabe travada entre 5 e 10 de Junho de 1967 que Israel ocupou os territórios palestinianos de Jerusalém Leste, Cisjordânia e Gaza, para além dos Montes Golã, território sírio. Apenas publicada online, esta entrevista faz parte de um conjunto de trabalhos para o número da VISÃO História que se encontra nas bancas, a propósito dos 50 anos da Guerra dos Seis Dias.
Junho de 1967 determinou de muitas formas o que Israel é hoje. Como descreve o impacto desta guerra?
Fez muito mal a Israel. Vamos na terceira geração de jovens que tem na sua biografia servir no exército, como as anteriores, só que as anteriores esperavam uma guerra e agora esta é uma espécie de exército de ocupação. Seis em cada dez israelitas nasceram depois da guerra de 1967. A Linha Verde [fronteira de 1948] não significa nada para eles. Portanto, a forma como Israel governa os territórios [palestinianos] é a coisa mais natural para eles. Não pensam noutra possbilidade e já não acreditam noutra possibilidade. A diferença entre hoje e 1967, ou mesmo 1980, ou o período dos Acordos de Oslo [1993], é que as pessoas já não acreditam na paz. Eu também não. Estamos presos em 1967, de facto. O sétimo dia continua em curso.
Mas também penso em 1967 como um «round» de vários conflitos, desde 1917. É um conflito que continua, que reflecte o sonho sionista de formar uma maioria na Palestina. E o sonho foi sempre ter o máximo de terra possível com um mínimo de árabes possível. Isso é o que está também nos documentos publicados na semana passada [meados de Maio].
Refere-se aos registos dos debates dentro do governo israelita em 1967.
Sim. Mostram a viragem dramática de uma espécie de desespero [pré-guerra] para uma euforia incontrolável. Após o triunfo sobre o Egipto, quando a aviação egípcia é destruída [logo no primeiro dia da guerra], tudo o que o governo israelita decide é irracional. Vem das entranhas, do coração, não da cabeça. Não há alternativas, não há peritos, não há pareceres legais. Aqui está um país preparando-se para ocupar lugares santos para centenas de milhares de pessoas em todo o mundo, e os ministros nem se perguntam quais as implicações legais, o que aquilo vai significar, o que vai acontecer. Só sabem que é o que querem.
Isso só ficou claro agora?
Já está no meu livro, mas sem bases oficiais. Agora temos registos oficiais. Ouvimos como eles falam, o que dizem. Não há um ministro que diga: queridos colegas, paremos um minuto para pensar porque é bom para nós ocupar Jerusalém Leste? A questão nem surge. Não pensam, sentem. E de repente abrem os olhos e oh, controlam milhões de árabes, sem a menor ideia do que fazer com eles.
Há um momento em que Levi Eshkol [o então primeiro-ministro] diz: talvez possamos mandá-los para o Brasil.
Sim, talvez possamos mandá-los para o Canadá, ou talvez para o Brasil. Grande ideia [risos], levar todos os árabes para o Brasil. Isto mostra como os ministros estavam perdidos, sem ideia do que fazer. O mesmo é válido para o debate sobre a Cisjordânia: talvez estabelecer um estado palestiniano, talvez dar-lhes autonomia, talvez dar-lhes um estatuto temporário…Hoje continuamos no mesmo ponto. Com a diferença de que agora há centenas de milhares de [colonos] israelitas a viver na Cisjordânia. Tornou-se muito mais complicado.
No seu livro detalha sonhos ou planos entre 1948 e 1967 para ocupar os territórios palestinianos. Apesar da rapidez da vitória ter sido uma surpresa, a guerra de 1967 foi uma oportunidade para cumprir algo desejado há muito?
Acabei de fazer uma biografia de David Ben Gurion [primeiro-ministro inaugural de Israel]. Durante os quase 20 anos entre 1948 e 1967, em numerosas ocasiões, ele considerou a hipótese de ocupar Gaza, Jerusalém Leste e a Cisjordânia, de uma vez, ou em momentos diferentes. Isso surgia sempre que havia confrontos com a Jordânia [que governava Jerusalém Leste e a Cisjordânia] ou o Egipto [que governava Gaza]. E Ben Gurion sempre decidiu não o fazer. As palavras dele são: os árabes não vão fugir uma segunda vez [como centenas de milhares haviam feito em 1948], então ficaremos presos com eles, teremos que os engolir, e Israel não pode engolir um milhão de árabes. Isto, numa altura em que havia apenas dois milhões e meio de judeus aqui — agora somos sete milhões e meio. Então, os planos estavam lá. Às vezes o exército dizia-lhe: vamos ocupar. Seis meses antes da Guerra dos Seis Dias, há um documento a concluir que não é do interesse de Israel ocupar a Cisjordânia por causa da população. Mas vem Junho de 1967 e toda a racionalidade é esquecida.
Quanto a Jerusalém Leste dizem: esta é a oportunidade, temos de o fazer hoje, porque amanhã o Papa ou a ONU ou o mundo intervirão. Encaram o momento como uma oportunidade. Estão todos a pensar em 1948, que devíamos ter feito isso em 1948 e não fizemos. Mas a questão é: porquê? Porque é que isso seria bom? O que perdemos em 1948? Claro, perdemos o Muro das Lamentações: então, que se negociasse um acordo para os judeus rezarem no Muro. Mas ocupar toda a área à volta?
O que ou quem impediu Israel de tomar os territórios em 1948?
Quanto a Jerusalém Leste, uma decisão de Ben Gurion. Moshe Dayan, então um general importante, sugere tomar Jerusalém Leste, Ben Gurion diz não. E o governo diz não. O mesmo para a Cisjordânia. Em 1956, Israel captura Gaza e é forçado pela Rússia e os EUA a retirar.
O mapa de 1949 é muito semelhante ao que Ben Gurion tinha na cabeça em 1937. O que ele achava possível para receber mais alguns milhões de judeus.
Em 1967 Israel era já um outro país?
Era muito mais forte. As pessoas começavam a viver bem, sucessos culturais, arquitetura florescente, a maior parte das crianças a irem para o liceu. O sonho isrealita começava a tomar forma. Mas 1967, em particular, foi o segundo ano de uma crise económica, e a atmosfera era má. Mais pessoas partiram do que judeus chegaram, foi a única vez em que isso aconteceu. Havia medo. Mas era injustificado, as infraestruturas começavam a ficar realmente bem.
A decisão de ocupar foi possível porque não houve pressão dos EUA?
Ao contrário, a decisão de começar a guerra dependeu de uma luz verde dos EUA. O exército estava a pressionar muito o governo, os israelitas esperavam um segundo Holocausto [com ataques dos países árabes] e isso, claro, punha uma pressão enorme no governo. O primeiro-ministro, Eshkol, teve de desistir da pasta da Defesa, dá-la a Dayan. Eshkol era considerado muito, muito fraco. Mas mantém a sua posição: até ter luz verde dos EUA não começa a guerra. Os EUA não estavam contentes, mas acabaram por dar luz verde.
E depois da guerra não pressionaram.
Depois da guerra ninguém pressionou realmente Israel para devolver os territórios. Nenhum governo dos Estados Unidos realmente pressionou Israel para fazer algo que Israel não quisesse. E por isso é que a performance dos presidentes americanos é tão desapontadora. Podiam ter-nos salvo de nós mesmos, mas não o fizeram.
Porque é que ao longo destes anos todos não houve realmente pressão para a ocupação acabar? A ocupação é possível até hoje porque os EUA de facto não se opõem a ela?
Não tenho a certeza. Pensemos em Obama. Ele realmente tentou. No começo veio com ideias messiânicas, de mudar o mundo, teve o Prémio Nobel da Paz no bolso antes mesmo de fazer algo. Mas a dado ponto disse para si mesmo que era impossível.
Desistiu?
Desistiu: querem combater-se uns aos outros, combatam-se. É espantoso, de facto: se olharmos para os últimos 50 anos, o mundo mudou. O regime do apartheid caiu, o império soviético foi-se, o muro de Berlim foi-se, a China entrou para o conjunto das nações, e só nós e os palestinianos nos comportamos como se ainda estivéssemos entalados em 1920.
Isto é um conflito sobre identidades. Não é sobre terra, fronteiras. É sobre nações que definem a sua identidade pela terra. Então, qualquer compromisso significa compromissos para a identidade. E não somos maduros o suficiente para uma decisão, Talvez não tenhamos sofrido o bastante. Se olhar para os israelitas hoje, a maior parte não paga qualquer preço pela ocupação. Não a sentem, não os afecta na vida quotidiana.
Para Israel ainda é mais barata a ocupação do que uma alternativa.
Barata em termos emocionais. Porque se queremos continuar a ser um país judeu e democrático temos de sair dos territórios.
O facto é que a maior parte dos israelitas não acredita nisso.
A maior parte dos israelitas não percebe isso, e não quer isso, portanto, a única saída será criar uma situação em que compreendam que a ocupação é má para eles. Os EUA dizerem: não vos damos seis bilhões de dólares. Ou os países europeus dizerem: não apoaimos os vossas inovações científicas; ou: qualquer israelita que queira passar uma semana em Paris precisa de um visto. Coisas destas, que realmente façam os israelitas perceberem que a ocupação é má.
Esta é uma socidade muito ideológica, e ficou mais à direita, mais religiosa. A combinação entre nacionalismo e religião é realmente o grande factor novo. Facilmente encontrará gente a dizer: moralmente estamos certos, é o nosso país. Eu vejo a ocupação como violação sistemática dos direitos humanos, imoral, e para muita gente ela é moral. Mas já nem estou a falar disso, estou a dizer que as pessoas não acham que seja má para Israel. Porque Trump quer visitar Israel? Porque Netanyahu pode pegar no telefone e falar com Putin quando quer? Não temos a sensação de que o mundo realmente se importe. Mas o mundo também não se importa com a Síria, e Israel ainda é uma país melhor do que a maioria à volta, e os árabes em Israel e nos territórios ainda estão melhor do que noutros países. Ainda assim, é muito mau.
Há razões para o mundo estar interessado em Israel. É o país santo. E presume pertencer ao mundo ocidental, portanto esperamos que as pessoas nos tratem como um país avançado, com valores democráticos, que merece o apoio do Ocidente. Mas se nos disserem que não nos portamos bem, ficamos terrivelmente ofendidos: oh, vocês são anti-semitas.
No seu livro é muito interessante ver a forma como os kibbutzim [na origem, judeus askenazitas, europeus] encaravam os mizrahim [judeus sefarditas, orientais, de países árabes]. Na raiz da utopia do sonho sionista, que era o de uma sociedade ocidental, havia já um elemento de discriminação?
Sim.
De racismo, mesmo?
Não usaria o termo racismo. Havia um elemento de propriedade em relação a esta terra. E eles [sionistas europeus] sabiam desde o começo que esta terra não estava vazia. Portanto, começaram a discutir o que fazer com os árabes. Ben Gurion falou da hipótese de um primeiro-ministro árabe em Israel. Não fucionou, e não podia funcionar. Foi auto-engano, não só fingimento. Até hoje muitos israelitas ainda acreditam que o sionismo reflecte uma injustiça histórica depois de 2 000 anos, todos esse clichés sionistas ainda são muito parte dos valores de Israel.
Referia-me a menosprezo face aos judeus sefarditas.
O sionismo foi um movimento europeu. Nunca prestou muita atenção aos judeus em países árabes. No fim do Holocausto é que descobriram os judeus dos países árabes porque não tinham alternativa [para povoar o novo país]. Sabiam que esses judeus não traziam as mesmas características para construir um estado moderno, tinham valores diferentes e frequentemente os menosprezavam. Ben Gurion menosprezava-os. Para ele, o Holocausto foi um crime contra o Estado de Israel porque eliminou aquele elemento do povo judeu que podia ter estabelecido um Estado maravilhoso. Agora estamos entalados com gente dos países árabes: era a ideia dele, embora muitas vezes tenha dito o oposto. Mas no seu diário, na correspondência, ele achava uma tragédia termos tido de receber os judeus dos países árabes. Era a tragédia do Holocausto.