Com o mundo de olhos postos em Glasgow e depois de António Guterres, secretário-geral da ONU, ter dito “chega” e assumido uma postura assertiva e crítica, eis que os primeiros dias da COP26 (a 26.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas) dão a conhecer dois importantes acordos – sobre a desflorestação e o metano – e um compromisso promissor por parte da Índia. Mas as expectativas quanto à cimeira continuam baixas, até porque já estamos a correr atrás do prejuízo e com um atraso considerável face aos objetivos traçados na cimeira.
“Estamos muito aquém do necessário e com uma folga que, neste momento, é realmente das mais curtas para não ultrapassarmos 1,5 ºC. Estamos com 0,4 ºC de folga [atualmente, a temperatura média é 1,1 ºC a 1,2 ºC mais alta do que no século XIX] e isto é já numa situação onde ainda é possível, mas o tempo está praticamente a chegar ao fim”, alerta Francisco Ferreira, presidente da ZERO e professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Na hora de procurar eventuais soluções para zelar pelo ambiente a curto prazo, a tecnologia acabou por ser um ponto de destaque, graças ao primeiro-ministro australiano, que a colocou no centro das atenções durante o seu discurso. “A tecnologia vai ter a resposta para uma economia descarbonizada, e alcançada de uma forma que não negue aos nossos cidadãos, especialmente nas economias em desenvolvimento, os meios de subsistência ou a oportunidade para uma melhor qualidade de vida”, disse Scott Morrison.
O papel da tecnologia no combate às alterações climáticas tem sido amplamente discutido, mas Francisco Ferreira pede cautela nas expectativas. “A tecnologia limpa é um caminho extremamente importante, o recurso à energia solar, à energia eólica. Mas não é, de forma alguma, a única solução e pode até não ser a solução principal, porque a solução principal tem a ver com as expectativas de consumo e o consumo de quem vive nos países desenvolvidos”, diz.
Para o professor universitário, mais do que depositar toda a fé na tecnologia, há que optar por “uma mudança de paradigma daquilo que é a sociedade e a economia ao longo das próximas décadas”, até porque, garante, “a tecnologia não nos salva das alterações climáticas de forma alguma, apenas é relevante, mas não é a principal vertente que faz essa mudança. O fundamental é realmente a criação de uma economia circular, que tenha em conta os limites do planeta, que garanta qualidade de vida, mas com níveis de consumo significativamente menores”.
Expectativas moderadas
“Esta é a última das últimas chamadas para garantirmos que não vamos acima do 1,5 ºC”, alerta Francisco Ferreira. O presidente da Zero defende um maior compromisso por parte dos “principais países responsáveis histórica e atualmente pelas emissões” e destaca que o cenário não é o mais otimista, e, por isso mesmo, “todos, não apenas os ambientalistas, mas até vários dirigentes políticos, têm mostrado um grande pessimismo em relação à cimeira”.
As expectativas quanto aos acordos e negociações nesta COP26 mantêm-se moderadas, uma vez que, mesmo já com “vários pontos positivos, como o acordo das florestas, o acordo do metano, outros compromissos que vão surgir”, a verdade é que “estamos muito longe” de ter “o problema resolvido”.
“A questão aqui é começar a perceber como vamos conseguir ter uma resposta mais célere do que estarmos à espera mais quatro anos para, em 2025, voltarmos a rever as metas. Aí já estaremos num ponto de não retorno em relação ao aquecimento de 1,5 ºC se continuarmos com o padrão de aumento de emissões dos últimos anos, tirando o ano de pandemia”, destaca.
Cada um ao seu ritmo pode não ser suficiente
O Brasil anunciou que tem como objetivo climático reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em 50% e de neutralizar as emissões de carbono até 2050. Já a Índia garante que atingirá a neutralidade carbónica em 2070, reduzindo até 2030 as suas emissões poluentes em mil milhões de toneladas. Estas décadas de diferença entre metas podem parecer eternas, mas para Francisco Ferreira são até positivas.
“Quando olhamos para a Índia a fixar a neutralidade carbónica para 2070, é algo que, ao contrário do que as pessoas podem pensar, é bastante positivo, porque a Índia vai ser um país com uma população maior do que a China e com emissões maiores do que a China. Ter este objetivo de longo prazo e fazer investimentos de curto prazo são um bom sinal, diria que são um bom ponto de partida. Mas não é suficiente, o desejável é que a Índia venha a antecipar este objetivo. Com a China, por exemplo, já é diferente, já tem uma capacidade de resposta muito maior do que a Índia, portanto, da China esperava-se, principalmente a curto prazo, um esforço maior.”
Mas neste compromisso a longo prazo, respeitando o ritmo de cada país, há que manter o foco no todo, diz Franscisco Ferreira, frisando que “o mais importante é que cada país ponha de parte a sua visão de curto prazo e perceba que a solução para as alterações climáticas passa, necessariamente, por um trabalho tão intenso quanto possível de mudanças estruturantes da sua economia, para que todos os países em conjunto, com as respetivas diferença, cheguem a um objetivo. Ou há um trabalho em conjunto ou não conseguiremos atingir os objetivos”. Porém, destaca o presidente da ZERO, traçar metas demasiado longínquas pode fazer com que seja “tarde demais”.
“O que nós precisamos verdadeiramente é que cada país, em linha com o secretário-geral das Nações Unidas, atue já, nós não temos folga, chegámos ao ponto de perceber que parte da humanidade, dos países mais vulneráveis, tem a sua sobrevivência em causa se nós não agirmos e esta falta de generosidade ainda não conseguiu ser ultrapassada.”
O primeiro-ministro António Costa é uma das ausências da COP26, mas isso não tira responsabilidade a Portugal na luta por um ambiente mais saudável, diz Francisco Ferreira, que destaca o facto de Portugal ser “um país na linha da frente dos objetivos climáticos, foi dos primeiros a anunciar a neutralidade carbónica para 2050, tem vindo a desenvolver todo um conjunto de fontes renováveis para a produção de eletricidade”.
Apesar de alguns setores estejam ainda “muito longe” do ideal climático, como “os transportes, a agricultura e a floresta”, o certo é que “Portugal fará parte destas decisões à escala da União Europeia”, contribuindo para a luta contra as questões climáticas, algo que, para o presidente da ZERO, poderia ter sido reforçado se António Costa tivesse ido à COP26. “Portugal poderia ter tido também uma voz importante e a acrescentar se o primeiro-ministro pudesse ter participado na cimeira de líderes, foi algo que a ZERO já lamentou, compreendemos, sem dúvida, a situação política, mas achamos que [António Costa] devia ultrapassar as circunstâncias para realmente podermos ter uma resposta à altura do que tem sido o papel de Portugal.”