Bastaram três horas, pouco mais de 50 pessoas e muita energia para palmilhar uma área de quatro quilómetros na areia da praia, para se apanhar cerca de uma tonelada de lixo na ilha Deserta, um autêntico paraíso a meia hora de Faro, por ferry-boat. Assim mesmo, num ápice, o que demonstra bem quão vulneráveis são os ecossistemas naturais perante a mão humana, mesmo em zonas tão pouco frequentadas como é o caso da Deserta.
A iniciativa, que decorreu recentemente, integra-se no projeto Life Ilhas Barreira e foi coordenada pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), envolvendo voluntários de várias outras entidades, entre as quais a Universidade do Algarve, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e o Animaris, o concessionário da ilha e proprietário do único restaurante do local.
O ambiente é animado – muitos jovens, alguns estrangeiros que estão a estudar em regime de Erasmus na Universidade do Algarve, e um grupo de voluntários já experientes nestas andanças que há muito arregaçaram as mangas e vão frequentemente para o terreno porque sentiram que já não lhes basta reciclar o lixo em casa.
A beleza natural do local e o aparente isolamento da ilha contrasta com a surreal montanha de despojos de tudo e mais alguma coisa que se vai acumulando e transportando para junto do cais de embarque. Cadeiras, sapatilhas, bocados de esferovite, estofos de sofás, máscaras anti-Covid, pneus, um cabo USB, guarda-sóis, muitas armadilhas de pesca, tampas e garrafas de água, latas de conserva… Foram mais de 6.000 items diferentes de lixo recolhidos pelos voluntários que pontuavam de forma abrupta o areal da Deserta.
“É sobretudo lixo trazido pelas marés e nem todo vem das atividades ligadas ao mar. A maioria são resíduos que resultam da nossa utilização diária”, diz Joana Andrade, que coordena o departamento de Conservação Marinha da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
O impacto de todo este lixo, claro, acaba por desregular o delicado equilíbrio local, interferindo com a fauna e a flora e deixando marcas no ecossistema.
“Esta iniciativa insere-se num grupo de ações de sensibilização do projeto de conservação Life Ilhas Barreira e que tem por objetivo preservar os habitats mais ameaçados. A sua área de incidência é na Ria Formosa e muito especificamente na ilha Deserta porque temos várias aves marinhas que aqui nidificam, como a chilreta ou a gaivota-de-audouin que é já uma espécie ameaçada” explica Joana Andrade.
A Deserta, recorde-se, integra as Ilhas Barreira, que como o nome indica, formam uma barreira entre o mar e a Ria Formosa. Composta por cinco ilhas (Culatra, Armona, Tavira, Cabanas e Barreta ou Deserta) e duas penínsulas (Ancão e Cacela), esta reserva natural, o território mais a sul de Portugal Continental, é o único local do País onde a gaivota-de-audouin nidifica. Em 2020, esta gaivota viu o seu estatuto global de ameaça revisto, passando de Pouco Preocupante a Vulnerável.
No mar ou em terra, o lixo é destrutivo para as aves. As que se alimentam de peixe acabam por ingerir quantidades letais de microplásticos que atrofiam os pequenos estômagos das aves-bebés. As que precisam da vegetação das dunas para a sua sobrevivência, como é o caso da chilreta (ou andorinha-do-mar anã) sofrem sempre que o lixo depositado sobre as dunas, asfixia precisamente essa vegetação.
Simão Acciaioli, é um dos fundadores da Brigada do Mar, associação que contribuiu com mais de metade dos voluntários para a recolha de lixo realizada na semana passada.
Criada há 13 anos, a associação tem como lema “indignação com ação”, um mantra que já permitiu retirar cerca de 850 toneladas de lixo em 1 700 quilómetros lineares de costa de norte a sul do País, em ações que reuniram mais de 6 mil voluntários.
“É um esforço que tem tido resultados fantásticos. Estou a lembrar-me, por exemplo, do complexo dunar entre Troia e Sines, que estava cheio de lixo, e agora já começou a recuperar. Mas estas ações não resolvem esta vergonha, o esforço teria de ser continuado… Por isso tem de ser atacado em todas as frentes”, afirma Simão Acciaioli, enquanto vai empilhando sacos e sacos num gigantesco monte de tralha.
Meio caminho andado para eliminar boa parte do lixo seria dar-lhe valor, diz. “Eu não vejo ninguém a deixar um cêntimo no chão quando o deixa cair e, porém, vemos milhares de garrafas de plástico deixadas na praia. É preciso criar valor para o lixo”, afirma, convicto, lembrando a urgência da mudança de comportamentos, seja das entidades competentes, seja o comum cidadão.
Até porque se o civismo imperasse e as pessoas deixassem de tratar as praias e o mar como um contentor para detritos, a recolha de todo o lixo atualmente existente nestes habitats levaria mais de 50 anos a concretizar, reforça ainda o responsável.
Para a Deserta, a estimativa do voluntário da Brigada do Mar é que, neste momento, existam ainda entre 10 a 15 toneladas de detritos por recolher.
Uma meta que implica mais voluntários e mais ações. Da parte da SPEA estão previstas mais quatro iniciativas a decorrer até ao final do projeto em 2023. O Planeta agradece.