A meio de outubro, Ioane Teitiota, 37 anos, descreveu, perante um tribunal da Nova Zelândia, como a subida dos níveis das águas, provocada pelo aquecimento global, tinha afetado o arquipélago-nação do Pacífico de onde é natural, o Kiribati colheitas arrasadas, águas doces contaminadas, casas inundadas e uma deslocação acelerada e, por vezes, conflituosa da população para as poucas áreas altas que ainda existem.
Teitiota, que está ilegalmente na Nova Zelândia, desde 2007, tem mulher e três filhos. “Não há futuro para nós, lá” disse ao juiz, de quem espera que lhe reconheça o estatuto de asilado. Se o magistrado o fizer, ter-se-á feito história: Ioane Teitiota, um imigrante que sobrevive da apanha de morangos, será o primeiro “refugiado climático” oficialmente reconhecido no planeta, de um total que a ONU admite atinja os 250 milhões em 2050.
Mas não é só com o destino de Teitiota que o problema das alterações climáticas está a voltar ao centro das atenções. No final de setembro, o IPCC Intercontinental Panel on Climate Change, o órgão das Nações Unidas que monitoriza o fenómeno alterou o seu grau de certeza de que aquelas mudanças são causadas pela atividade humana de 90 para 95 por cento e de “muito provável” para “extremamente provável”.
Um estudo de análise de risco da consultora Maplecroft, divulgado em outubro passado, prevê que, em 2023, um terço do PIB mundial será oriundo de regiões sob risco extremo de serem afetadas por tufões, secas prolongadas, fogos florestais gigantescos ou constante subida de nível das águas, representando grave ameaça para uma economia cada vez mais globalizada. Embora a consultora britânica não divulgue a sua estimativa de prejuízos, a associação DARA calculou que o fenómeno das alterações climáticas matou 5 milhões de pessoas e custou 1,2 biliões de dólares à economia mundial só em 2010.
Os cientistas têm vindo a debruçar-se sobre a influência destas mudanças em áreas até há bem pouco tempo insuspeitas. As alterações climáticas são agora vistas como uma espécie de “inimigo escondido”, um “multiplicador de ameaças”, que influencia conflitos como o do Darfur, ou as primaveras árabes, e impulsiona fenómenos como a imigração subsariana ou a corrida ao Ártico.
Com exceção de uma minoria de negacionistas, o consenso começa a ser de que as consequências do aquecimento global não são uma coisa do futuro. Elas já aí estão e já moldam o planeta tal como o conhecemos hoje.
‘Comer a estação seca’
Tome-se o exemplo da última catástrofe na Ilha de Lampedusa, a 3 de outubro. A esmagadora maioria dos imigrantes clandestinos que morreram nessa tragédia que envergonhou a União Europeia, era oriunda da Eritreia um país que, segundo o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU, “tem sofrido grandemente os efeitos negativos da variabilidade do clima” e que agora sofre uma época de seca a cada três anos, quando costumava haver apenas uma por década. Vários dirigentes africanos apontaram a tragédia como diretamente influenciada pelo aquecimento global.
As secas são, invariavelmente, uma causa da emigração, em África, onde as famílias adotaram uma estratégia a que chamam “comer a estação seca” e que se traduz em mandar um dos seus membros para a Europa para ajudar os que ficam a alimentar-se durante esse período. “Haverá mais refugiados a virem para os vossos países, à procura de pastos verdejantes”, disse ao Euractiv (um site de informação sobre a UE) o presidente do Grupo dos Países Menos Desenvolvidos da ONU, Pa Ousman Jarju. “Olhem para o que está a acontecer. Quase todos os meses, ouvimos falar de uma tragédia, envolvendo gente de África ou da Ásia. Trata-se da consequência de o mundo rico continuar a emitir gases com efeito de estufa, ao mesmo tempo que ignora as promessas feitas, de ajuda para lidar com os problemas climáticos.”
Ou, então, olhe-se para a Primavera Árabe, em que talvez tenhamos assistido, pela primeira vez, a um fenómeno a que Center for American Progress chama “globalização da catástrofe” ao mesmo tempo que entrámos num período histórico de “agflação” inflação provocada pelo aumento dos preços na agricultura. No período de 2010-11, o preço do trigo subiu fortemente, afetado por uma série de fenómenos climáticos anormais. Verificou-se a maior onda de calor, em 130 anos, na Rússia, onde a seca e os fogos florestais descontrolados determinaram uma queda de 32% da produção, levando o Kremlin a encetar uma proibição de exportação inusitada. O mesmo fenómeno afetou a Ucrânia (uma queda de 19,3%) enquanto, no Canadá e na Austrália, chuvas recorde para a estação fizeram as colheitas baixar 13,7% e 8,7%, respetivamente.
Na China, também devido a uma seca tão pronunciada que “só acontece uma vez em cada século” a produção caiu 0,5%, enquanto o consumo continuou a aumentar. Por isso, Pequim tentou aumentar fortemente as suas provisões, para evitar fomes maciças, como a de 1958-61, e que o preço nos mercados mundiais subisse em flecha. Assim, nas primeiras manifestações, no Egito, o maior importador de trigo do mundo, as pessoas brandiam baguetes de pão tal como o fizeram em locais tão distintos como Moçambique, Tunísia, Argélia, Jordânia ou Iémen.
A Síria, por exemplo, enfrentou, entre 2006 e 2011, a “pior seca de longo prazo e a mais severa quebra de colheita, desde que as civilizações agrícolas começaram, no crescente fértil, há muitos milénios”, segundo o botânico e pioneiro do movimento Local Food (Comida Local), Gary Paul Nabhan. Os pastores do Noroeste do país perderam 85% dos seus rebanhos uma situação que afetou diretamente 1,3 milhões de pessoas. Só para a cidade de Aleppo migraram 200 mil agricultores, pastores e outros rurais. A cidade rural de Dara’a, situada numa das zonas mais castigadas, teve um papel determinante no início dos protestos anti-Assad. Também na Líbia razões semelhantes ajudaram a que Benghazi se tenha declarado autónoma de Trípoli e que Misrata se transformasse numa “cidadeestado armada” e oposicionista ao regime de Kadhafi.
Do Darfur ao Tuvalu
Este tipo de análise não esquece outras causas a financeirização dos mercados agrícolas, “invadidos” por fundos de investimento especulativos, a ausência de processos de mediação democráticos, no Norte de África e no Médio Oriente, por exemplo. Mas não deixa de ser interessante verificar que até conflitos tão distantes como a guerra do Darfur (2003), no Sudão, estão relacionados com as alterações climáticas por causa do avanço do Sara e de uma queda da pluviosidade de 30% em 40 anos, árabes nómadas ocuparam as terras dos Nuba e de outras tribos negras africanas dedicadas à pastorícia, cortando as árvores para alimentar os seus camelos, o que desencadeou o conflito.
Um padrão que se pode repetir no Chade e em todo o frágil ecossistema do Sahel. “Vão dar-se mais Darfur, no futuro”, disse, ao site Daily Climate, Bob Correl, um cientista da Global Environment & Technology Foundation e ex-presidente do Gabinete de Avaliação de Energia Global norte-americano. Um quarto de toda a atividade agrícola do globo verifica-se em áreas de escassez de água (stresse aquífero), segundo um estudo divulgado há poucos dias pelo World Resources Institute.
Muitos mais exemplos de que as alterações climáticas cujo papel no desenvolvimento do globo será novamente discutido em Varsóvia, pela ONU, numa conferência que se inicia a 11 e termina a 22 deste mês já moldam o nosso futuro poderiam ser aduzidos. Na Índia, o Governo de Nova Deli tem vindo a aumentar e a reforçar uma cerca de segurança de alta tecnologia, com 3 400 quilómetros (a maior do mundo), com o objetivo de suster uma esperada migração de 15 milhões de novos “refugiados climáticos” do Bangladesh o local do globo mais afetado pelo fenómeno, segundo a Maplecroft.
Nas Maldivas, o Governo estabeleceu um fundo, proveniente das receitas do turismo, destinado a comprar terra no Sri Lanka ou na Austrália, que possa servir de refúgio aos seus habitantes, quando, nas próximas décadas, as ilhas se tornarem inabitáveis. O Kiribati está a fazer o mesmo, mas nas ilhas Fidji. O Tuvalu também começa a negociar com Camberra o seu futuro, enquanto um dos primeiros estados sem território do mundo.
No Ártico, o aquecimento global abriu as rotas de passagem do Nordeste e do Noroeste à navegação, por períodos sem precedentes e, em consequência, o número de navios a solicitar autorizações de passagem por essas rotas (que poupam 8 mil quilómetros semanas de mar nas ligação entre, por exemplo Hamburgo e Tóquio) subiu de uma mão-cheia para cinco centenas, nos últimos quatro ou cinco anos.
As riquezas naturais do Ártico estão a fazer com que os Estados com fronteiras na região Canadá, EUA, Dinamarca (Gronelândia), Rússia e Noruega invistam maciçamente não só em campos de gás e petróleo os primeiros deverão começar a operar nos próximos meses mas também em recursos militares que sustentem as suas reivindicações de soberania. São investimentos de biliões de euros, públicos e privados, que mostram, em definitivo, que o futuro não está só a chegar, mas, em grande medida, já se encontrou connosco.