Muitos serão hoje os contextos de audição das Quatro Estações de António Vivaldi. Desde a sua utilização como música ambiente à tentativa de recreação dos tempos e dos sons originais com instrumentos da época e cordas de tripa temos, fundamentadamente, de tudo. No entanto poucos recordam que Vivaldi escreveu um poema descrevendo cenas muito pormenorizadas que, minuto a minuto, segundo a segundo, deviam acompanhar o ouvinte de modo a que ele pudesse ser conduzido pelos caminhos que o compositor queria que fossem percorridos.
Mas para além sua beleza, que justificação terá esta música programática, e uma má tradução, para figurar numa crónica de ambiente? A sua perspicácia decerto já descobriu que a razão é o “tempo”, ou melhor ainda, o clima. Apesar dos tempos estarem maus mesmo para os “reformados de primeira” decerto que muitos já foram a Veneza (onde o nosso Vivaldi se passeava com as suas amigas cantoras e era apontado por muitos pela sua condição de padre pouco praticante, no que ao altar diz respeito) ou que a “espreitaram” centenas de vezes na televisão e no cinema. E aposto que nunca encontraram canais gelados onde os venezianos faziam as suas loucas correrias de inverno descritas pelo padre ruivo.
Na realidade a Europa, e o mundo, teve nos últimos milénios algumas variações climáticas com um efeito profundo no modo como se vivia e, acima de tudo, se morria. Uma delas foi a chamada Pequena Idade do Gelo, que a ciência moderna caracteriza pela existência de períodos de frio intenso (entre o séc. XVI e o XIX). Assim não é de estranhar que na primeira metade do séc. XVIII o nosso Vivaldi reportasse lagos gelados.
No entanto as coisas são decerto muito menos bucólicas que aparentam. Com a dependência extrema dos cereais para alimentação de uma população crescente as variações climáticas e um certo tipo de mau tempo foram dramáticos para um ecossistema que estava (com os constrangimentos da época) a trabalhar no limite. E aí aconteceu um pico de frio a partir de 1770 e um “El NINO” particularmente devastador entre 1788 e 95. Com secas na Austrália, na Índia, em todo o Sudoeste da Ásia e no Pacífico, no México, estendendo-se a África com quebras recorde no nível do Nilo. Os problemas sociais foram incrivelmente aumentados com despovoamentos de muitas regiões e com um número estimado de mortes de 11 milhões só no Sul da Ásia.
Despreocupação em época de bonança
O que é característico das grandes moles humanas é o facto de reagirem da mesma maneira que os seus colegas animais. Assim aproveitam claramente as oportunidades até ao “tutano” não antecipando as consequências quando as coisas mudam.
Por exemplo as altas temperaturas eram agradáveis no centro do continente americano levando os índios a expandirem-se. Quando as coisas mudaram a crise aconteceu com milhares de animais e pessoas mortas e guerras entre as diferentes tribos.
Ao invés, na Europa e no resto do mundo os tempos eram de contração com tempestades por toda a Europa onde, por exemplo, as bolas de granizo eram tão grandes que devastavam tudo, chegando a matar animais.
Claro está que o preço dos cereais e do pão subiu e a fome, provocada por fatores tão diversos como o congelamento dos rios que impedia a moagem do cereal e a absoluta ausência deste, foi o cadinho onde a revolta se alimentou levando a regulares e sistemáticas razias desde as coutadas às padarias. Com a morte sistemática dos pequenos símbolos de autoridade (os primeiros a ir foram os guarda caça) a resistência das populações foi aumentando. E o resto é história tanto na revolta da Catalunha como na Revolução Francesa.
Como será o nosso “El Nino”?
Todos esquecem uma frase de Tocqueville que disse que, não fossem essas respostas à estranheza do clima “o velho edifício social acabaria por cair, num sítio antes, noutro mais tarde; mas apenas teria caído peça a peça, ao invés de cair todo de uma vez só”.
A estranheza do clima só se equipara talvez à estranheza desta crónica. Afinal qual é o ponto? Simples e difícil. Por um lado para entender que, apesar de todo o poderio do ser humano, a sua dependência do ambiente é total, especialmente se pensarmos não nos poderosos, mas sim no conjunto social. Que os movimentos sociais são em muito determinados pelos contextos climáticos e pela produção de comida. Comida baseada num conjunto de produtos (i.e., cereais) pouco nutritivos e muito energéticos que fazem multiplicar o número de pessoas mas diminuem a qualidade da sua vivência para além de serem demasiado sensíveis aos ditames climáticos.
Se as flutuações de El NINO na “Pequena Idade do Gelo” influenciaram tanto, como será com as variações climáticas anunciadas e para as quais a resposta é quase inexistente?
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