Aterramos no aeroporto da Beira. É inverno em Moçambique mas o termómetro teima em manter-se preguiçosamente acima dos 25ºC. Despimos os casacos, pegamos na bagagem de mão e caminhamos em direção à gare.
À nossa espera está Gonçalo Barradas, 48 anos, o engenheiro agrónomo expatriado pela Galp Energia que, de dia, cultiva plantas de jatropha num clima tropical e, à noite, ouve música clássica enquanto consulta o e-mail, na sua casa de campo, no Búzi, decorada com gosto urbano. Será ele o guia que, durante três dias, nos conduzirá pelas duas plantações experimentais que a empresa portuguesa está a desenvolver desde 2008, naquele país africano, ao abrigo de um projeto que, em 2014, dará trabalho a 4 500 moçambicanos.
É a partir da jatropha, uma planta não comestível originária da América Central, de cujo fruto se extrai um óleo viscoso usado como biocombustível, que a Galp Energia espera produzir o seu “petróleo verde”.
No estado adulto, a jatropha pode atingir três a seis metros de altura e produzir sementes, com 30% a 35% de teor de óleo, durante um período de vida útil de 30 anos. Tóxica para seres humanos e animais, é uma espécie muito resistente ao stresse hídrico e o seu cultivo adequado a climas tropicais secos. Em Portugal, onde é conhecida como purgueira, foi usada para iluminação pública até ao início do século passado, devido ao seu elevado poder calorífico.
A jatropha é uma das alternativas em que a Galp Energia aposta para cumprir a legislação da União Europeia (UE) que obriga à incorporação, até 2020, de 10% de energia de fontes renováveis nos combustíveis rodoviários. Maioritariamente, de biocombustíveis.
Mas a produção de bio-substitutos para a gasolina e gasóleo está longe de ser consensual, com as grandes empresas mundiais a serem acusadas pelos ambientalistas de transformarem África no seu celeiro.
Mesmo no caso de Moçambique, onde o cultivo de jatropha só é autorizado em terrenos marginais, não aproveitados para fins agrícolas.
Enquanto nos introduz no cultivo da jatropha e nos põe a par das metas do projeto, Gonçalo Barradas guia-nos numa visita rápida pela cidade da Beira, com as suas avenidas monumentais salpicadas de gruas e andaimes. Depois de uma paragem no centro, fazemo-nos transportar em viaturas 4×4 rumo ao Corredor da Beira, uma espécie de zona franca que se estende ao longo da faixa mais estreita desta parte central do território moçambicano.
É aqui, perto do Índico, que floresce o mais próspero dos negócios locais: o dos vendedores de estrada, que nos seguem até aos limites da urbe com os seus panos recheados de mercadoria. Mais à frente, haveremos de abandonar o Corredor, em direção à zona agrícola do Búzi, na província de Sofala, onde se situa o maior dos campos de jatropha da Galp Energia.
Nesta primeira etapa, percorremos cerca de 80 km no troço que também dá pelo nome oficial de Estrada Nacional n.º 6 (EN6). Pelos vidros do 4×4, desfilam já as primeiras mangueiras e, por vezes, um embondeiro ou um cajueiro. Pequenas machambas, hortas familiares, exibem as suas cuidadas culturas de subsistência, à base de mandioca e de milho. Passamos o Dondo e a fábrica de cimento da portuguesa Cimpor, onde as casas são feitas de adobe e os telhados de folha de palmeira, um cenário que se repetirá no resto do percurso. Atravessamos Mafambisse e a fábrica açucareira local, onde se extrai o açúcar em rama. As bancas de estrada, que também vendem aguardente de cana, vestem-se agora de vermelho, amarelo e azul, efeito das pinturas publicitárias das duas operadoras locais de telemóveis.

DE DUAS OU QUATRO RODAS Há muitas maneiras de vencer o Corredor da Beira. Há gente que vai e volta a pé, de bicicleta, de moto ou a bordo das velhas Toyota Hiace convertidas em “chapas” de passageiros. Os mais afortunados, pelos padrões locais, conduzem potentes jeeps de jantes reluzentes. Nas bermas da estrada, as mulheres, grávidas ou com filhos às costas, embrulhados em coloridas capulanas, equilibram bandejas com frutas e legumes destinados aos mercados locais.
As crianças, esfarrapadas e descalças, desafiam as leis da física e transportam à cabeça grandes sacos de carvão enquanto, pela mão, conduzem os irmãos mais novos. O vaivém é permanente, na maior parte do ano. Na época das chuvas, algumas partes do Corredor da Beira, situado abaixo do nível do mar, ficam submersas durante dias a fio. Nessas zonas, alagadas pelas cheias, morre-se afogado. E de fome.
As Nações Unidas teimam em reservar a Moçambique um dos últimos lugares no seu índice de desenvolvimento humano 165.ª posição em 169 países. No ranking da Transparência Internacional, o país não consegue ficar melhor na fotografia: é a 116.ª nação mais corrupta, num total de 178. O rendimento per capita dos 23,5 milhões de habitantes mantém-se abaixo dos mil dólares, e a esperança média de vida não ultrapassa os 48,5 anos. Em 2010, a economia acelerou 6,5%, mas 70% dos moçambicanos vivem abaixo da linha da pobreza. Uma realidade que se deverá manter, apesar dos grandes investimentos na área dos recursos naturais: extração de areias pesadas em Nampula (Norte), gás natural em Inhambane (Sul), carvão mineral em Tete (Norte) e prospeção de petróleo na bacia do Rovuma (Norte).
O desenvolvimento de Moçambique, adiado desde o final da guerra civil em 1992, parece estar finalmente em marcha, mas o país ainda terá de viver das ajudas internacionais do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial de Saúde e da Unicef durante muitos anos. A dívida externa, avaliada em 5 mil milhões de dólares, é um monstro que asfixia e tudo devora à sua volta.
NA PICADA ATÉ AO BÚZI Deixamos o alcatrão e entramos numa estrada de picada. Uma hora após a partida da Beira, a terra ganha um ligeiro tom avermelhado e cola-se à pele dos que, a pé ou em cima das suas bicicletas carregadas de lenha, acenam à passagem das viaturas todo-o-terreno. Nas bermas, alastram queimadas que lambem o capim, os arbustos, as folhas das árvores frondosas e seculares que habitam nestas paragens. Anfitrião atento, Gonçalo Barradas vai desfiando os nomes das espécies que avistamos da janela. Passamos Tica, Cheadeia, Guara Guara, minúsculas povoações de cubatas com pequenas escolas, templos religiosos e centro de saúde.
A estrada para o Búzi, vasta zona agrícola de arrozais e canaviais, cultivados nas férteis margens do rio com o mesmo nome, transporta-nos, afinal, para o interior de Moçambique, onde a pobreza é extrema.
A tarde vai já a meio quando chegamos ao batelão que nos levará à outra margem do caprichoso rio Búzi. Avisam-nos sobre os crocodilos e pedem-nos para mantermos uma distância de segurança. Serão precisos 20 minutos para cruzar um minúsculo troço de rio que se venceria em 20 braçadas. “Quando me desloco à Beira, na época das chuvas, nunca sei se, no regresso, consigo atravessar o rio para voltar ao Búzi”, diz Gonçalo Barradas.
Na margem direita do Búzi, numa zona marginal ao cultivo de cana-de-açúcar, estendem-se cerca de 500 hectares de Jatropha curcas linn, nome científico desta espécie introduzida em Moçambique há perto de 500 anos, com fins medicinais. A Galp Energia, operador integrado de petróleo e gás, decidiu apostar na produção de biocombustíveis, depois de uma primeira incursão “verde” na energia eólica. Nos últimos três anos, investiu neste negócio 25 milhões de euros, em Moçambique e no Brasil. Uma gota de água no balanço de um gigante que fatura 14 mil milhões de euros, em Portugal e Espanha, e está presente em 13 pontos do globo entre os quais o offshore brasileiro onde decorre a exploração de petróleo em águas profundas.
Em Portugal, cada litro de gasóleo rodoviário vendido pela Galp Energia incorpora já 6,75% de biocombustíveis, igualando o limite técnico para os óleos de primeira geração (FAME) consentido pelos fabricantes automóveis. Para concretizar a meta europeia que estipula a incorporação de 10% de energia de fontes renováveis nos combustíveis até 2020, a empresa tem de procurar alternativas e entrar nos biocombustíveis de segunda geração (HVO). O clima, a escassez de solos e a concorrência com a cadeia alimentar desaconselham a produção em Portugal. Por isso, a empresa apostou no óleo de palma no Brasil (Pará), em associação com a Petrobrás, e nas sementes de jatropha em Moçambique. Com a Companhia do Búzi (gerida pelo português Jorge Petiz), criou a Galp Búzi, e com as estatais Petromoc e Ecomoz constituiu a MoçamGalp, no Chimoio, uma pequena cidade da província de Manica, situada no extremo oeste do Corredor da Beira.
A Galp Energia tem como meta a produção anual de 35 mil toneladas de biocombustíveis em Moçambique em 2018 inicialmente fixado em 50 mil toneladas, o valor foi revisto em baixa. Será uma pequena parte das 600 mil toneladas de óleos vegetais que a empresa terá de incorporar nos combustíveis até 2020. A maior fatia virá do Brasil, cuja produção está estimada em 300 mil toneladas anuais. Para já, a empresa encara o negócio dos biocombustíveis como uma imposição ambiental que decorre da adoção obrigatória das normas europeias, mas no qual procura ser autossuficiente. O impacto sobre os preço de venda ao público da gasolina e do gasóleo não é, por enquanto, conhecido.

O ÓLEO DE JATROPHA Na Galp Búzi, uma sirene do tipo industrial desperta-nos às 6 da manhã. Hora e meia depois, saímos com destino ao campo.
O corrupio de pessoas e bicicletas é já intenso. Convertido em símbolo de riqueza, muitos só procuram mulher para casar depois de adquirirem o seu primeiro veículo de duas rodas. Os mais incautos são avisados da passagem dos todo-o-terreno pelo toque quase permanente das buzinas na picada. Uma nuvem de pó perseguenos, visível pelo retrovisor.
São 8 horas quando chegamos ao Centro Experimental de Chissamba, onde o diretor da Galp Búzi, com a colaboração de especialistas de universidades portuguesas, procede ao melhoramento das plantas e desenvolve técnicas inovadoras de produção, mudando a sua disposição no terreno, estudando a coabitação com outras culturas, podando aqui e ali, combatendo as pragas… A cultura da jatropha ocupa 130 pessoas, número que sobe para 300 na época das colheitas, que se repete duas vezes por ano. O esmagamento das sementes será feito longe dali, em Inhambane, a 800 km de distância, para onde seguirão as 40 toneladas já armazenadas na antiga fábrica de algodão da Companhia do Búzi. A escassa produção ainda não justifica a sua exportação, a qual só deverá verificar-se dentro de três a cinco anos.
Nessa altura, metade da produção ficará em território moçambicano e a outra metade poderá seguir para a Europa, onde será sujeita a um delicado processo de hidrogenação que transformará o óleo de jatropha num biocombustível de segunda geração. Em estudo, está também um projeto de “desintoxicação” do óleo e seu aproveitamento para rações animais.
USAR A TERRA O uso de terras agrícolas para fins não alimentares, uma polémica que divide ambientalistas e produtores de biocombustíveis, não deixa ninguém neutral. “Não vamos competir com a cadeia alimentar”, garante Gonçalo Barradas. O investimento da Galp Energia “cria emprego em zonas rurais e promove o aproveitamento económico em áreas desocupadas”, sublinha.
“É uma ficção criada pelos ambientalistas “, defende, por sua vez, José Pimentel, diretor do Centro Experimental do Cutchi, no Chimoio, onde iremos mais à frente. “Moçambique tem 35 milhões de hectares de área cultivável, mas só 5% estão aproveitados”, afirma. No Chimoio, a empresa tem sentido dificuldades em expandir a sua área de cultivo de jatropha, sem colidir com os interesses dos agricultores locais. Os esforços da empresa concentram-se agora nos 10 mil hectares de savana arbórea, ainda por desmatar, que lhe foram atribuídos a norte do território, em Mocuba, perto de Quelimane, na província da Zambézia. É a partir dessa futura exploração que a Galp pretende concretizar as metas de produção, só possíveis com a extensão das áreas de cultivo para um total de 25 mil hectares o que irá garantir trabalho a 4 500 moçambicanos.
“Passámos dois anos a aprender, mas o objetivo é tornarmo-nos autossuficientes ” na produção de bio-substitutos para o gasóleo, explica Fernando Bianchi de Aguiar, um dos responsáveis do projeto da Galp em Lisboa.
Como qualquer outro detentor do Direito de Uso e Aproveitamento da Terras (DUAT) em Moçambique a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida , a Galp Energia, antes de iniciar o cultivo de jatropha, faz o levantamento topográfico, estuda o impacto ambiental e desenha o ciclo de vida das plantações, contabilizando e compensando as emissões de C02, de acordo com as normas europeias. Avança, de seguida, com os programas de fomento e extensão rural, adquirindo sementes de jatropha aos agricultores locais. Sempre sob a vigilância e com a bênção dos régulos, hábeis negociadores de contrapartidas nem sempre essenciais, como telemóveis ou chapas de zinco ondulado para as suas habitações.
O relacionamento com as populações é um assunto delicado, que a Galp tenta contornar com os seus programas de segurança alimentar culturas de milho e girassol destinadas a serem vendidas aos trabalhadores e suas famílias, a preços acessíveis.
No Búzi, a última etapa da visita leva–nos a um campo de cultivo de jatropha de um agricultor independente (ver texto nestas páginas) e à Escola Primária Completa 1 de Junho, reconstruída há dois anos a expensas da petrolífera portuguesa. Frequentada por 1 200 alunos, acolhe crianças dos 6 aos 12 anos, que ali cumprem os primeiros sete anos de escolaridade, auxiliadas por 20 professores. Com seis salas e um balneário, as instalações acusam um certo cansaço da presença diária de tantas crianças.

DE VOLTA AO CORREDOR Numa manhã africana demasiado fresca para as roupas leves trazidas de Portugal, iniciamos o trajeto de regresso ao Corredor da Beira, retomado no ponto em que dois dias antes o abandonámos. Seguimos para ocidente. O destino é agora a pequena cidade agrícola do Chimoio, na província de Manica. Ainda temos 120 km de estrada pela frente. À medida que avançamos, o tráfego torna-se mais intenso e avistam-se os primeiros mercados de rua.
Por entre um coro de buzinas, os veículos todo-o-terreno cruzam-se, na estrada, com grandes camiões carregados de toros de madeira centenária. São interesses chineses, dizem-nos. Na berma, um camião acidentado é despojado da sua valiosa carga, destinada a ser embarcada no porto da Beira em direção ao Extremo Oriente.
Pela amostra, concluímos que andam a desmatar a floresta moçambicana. Estarão os moçambicanos a par do saque? Provavelmente não.
Nesta parte do trajeto, os 4×4 serpenteiam o alcatrão que se abre em feridas cada vez maiores. Chegamos ao Inchope e cruzamos a Estrada Nacional 1, que liga o Norte ao Sul de Moçambique. Estamos a avançar no mapa, a paisagem altera-se e torna-se mais verde. A savana fica para trás e vai sendo substituída por uma variedade de árvores e arbustos, pomares de frutas e flores naturais dos climas temperados.
Nas bancas de estrada, as mangas e as peras-abacate cedem o lugar aos citrinos do Chimoio. Iniciamos a subida em altitude, até perto dos 6 mil metros.
Quando descemos das viaturas, no Centro de Formação de Pessoal e Produção de Sementes do Cutchi, ficamos cobertos de uma fina camada de pó. No Chimoio, a terra é de uma intensa cor vermelha.
José Pimentel, diretor-geral da Moçam-Galp então a escassas semanas do seu regresso a Lisboa guia-nos entre as fileiras de jatropha do seu centro experimental, instalado num declive do terreno. O clima da região não tem sido tão bondoso para a jatropha como no Búzi. Instalada em terrenos da TextÁfrica antiga empresa têxtil da família Magalhães, a plantação de 200 hectares de jatropha da Galp Energia está num impasse. Permanecer como centro experimental, com os seus 45 empregados, ceder o terreno a terceiros ou entregar a plantação à população local são as hipóteses em estudo. O desenvolvimento das culturas não é tão favorável como no Búzi e a escassez de terrenos limita a expansão da área de cultivo.
Passamos a última noite no Chimoio e, de manhã cedo, partimos para o aeroporto local com destino a Maputo. Chegamos à capital a bordo de um teco-teco das Linhas Aéreas Moçambicanas (LAM) que, no momento em que se faz à pista, desenha ainda uma derradeira curva no ar antes de aterrar, sobre a quadrícula de ruas e avenidas que nos hão de conduzir à Baixa de Maputo, com os seus mercados de rua cobertos por chapas de zinco.
É tempo de regressar a Lisboa.