Entre serras e planaltos, numa região onde os Invernos são rigorosos e as gentes hospitaleiras, contam-se histórias de naturezas domesticadas, de vidas comunitárias e tradições seculares que se foram perdendo. Os quatro espaços do Ecomuseu do Barroso são apenas um aperitivo
“Estão a gostar do Ecomuseu?” – Não estranharíamos a pergunta que nos faz uma rapariga loira, de olhos claros e faces rosadas, se já tivéssemos começado a visita. Mas acabamos de chegar a Montalegre e é ela até quem nos abre a porta do Centro de Interpretação, baptizado com o nome do carismático Padre Fontes. Divertida com o nosso espanto, acrescenta: “O Ecomuseu começa quando se entra no Barroso.”
A resposta, então, é claramente “sim”. Apesar de sinuosa, a estrada de Braga que nos trouxe aqui é todo um consolo para a vista: os recortes das serras do Parque da Peneda-Gerês do lado esquerdo; a barragem de Venda Nova e a dos Pisões em seguida; as vacas barrosãs, com a sua pelagem acastanhada e imponentes chifres, a atravessarem-se no caminho; os carvalhos, os lameiros… E houve aquele regionalismo da senhora do café onde tomámos o pequeno-almoço – “Esperem só um xisquinho” – música para os ouvidos.
A sede do Ecomuseu, inaugurada há três meses, fica mesmo na sombra do castelo, em Montalegre. Nasceu de palheiros, de uma eira (que foi preservada), de casas que se uniram para dar lugar a um espaço de diferentes níveis. O que vemos é tudo menos um museu convencional. O director David Teixeira confirma que esse era o objectivo: “A ideia é que seja apenas um ponto de partida e de orientação para os visitantes, queremos que vão visitar o património no terreno.” Acima de tudo, aqui aguça-se a curiosidade: “Uma viagem pelo território através dos sentidos: toco, cheiro, sinto a região”, resume David.
Logo à entrada, ao lado da sala onde são passados documentários sobre temas que vão das chegas de bois à matança do porco, perdemo-nos com os dedos numa maqueta virtual do Barroso. Um ecrã táctil permite “chegar” aos pontos mais interessantes: ver fotografias, filmagens e reconstituições em 3D de monumentos, aldeias, locais dignos de visita.
Mas o tacto pode sentir mais do que novas tecnologias. No primeiro andar, convidam-nos a meter a mão em caixas e, através do toque e do cheiro, adivinhar os produtos que não vemos (desvendamos um: alfazema). Numa galeria onde se recriam ambientes, encontramo-nos de repente numa floresta. A cada passo que damos, ouvimos o barulho de folhas pisadas. É a altura certa para conhecer melhor a fauna e flora locais. Entre muitos seres vivos, como a águia-real ou a lontra, os painéis dão destaque ao lobo ibérico, que ainda subsiste por aqui, no meio de grande diversidade arbórea, em que o carvalho é rei.
Achados arqueológicos fazem a ligação com o patamar seguinte, onde se fala sobretudo de gente e costumes. Há mais vídeos para ver, de coisas simples (como o nascimento de um vitelo ou um corte tradicional de barba e cabelo), mas também uma parte expositiva, com vestes, utensílios agrícolas, objectos que já pertenceram ao quotidiano das gentes da terra. Uma traqueia de lobo chama a atenção. Acreditava-se que os porcos que bebessem água passada por dentro da goela do lobo ficavam protegidos de uma doença a que chamavam “lobeira”.
No chão da sala seguinte, um dicionário explica alguns dos termos que compõem o dialecto barrosão. Sabe, por exemplo, o que significa casqueiro? Nesta sala, a última, visitamos o Barroso ao longo do ano. “Cruzam-se as actividades agrícolas e festivas mês a mês”, explica o guia. O Dia das Bruxas, que se celebra todas as Sextas 13, não é esquecido e pode ver-se a capa que o Padre Fontes usava para dizer o esconjuro e o caldeirão onde se faz a queimada galega.
De Montalegre a Salto, onde fica o maior dos três pólos do Ecomuseu, são 36 quilómetros. O espaço a visitar fala, ele próprio, da região. É uma casa típica de lavrador abastado com dois andares: em baixo ficava o gado, em cima a habitação. Há sempre visitas guiadas e, com uma colecção tão rica, a história do que se vê dificilmente demora menos de hora e meia a contar. No quinteiro, o pátio interior onde ficava o gado, ainda há feno. Em vez de animais, porém, estão carros de bois, um típico do Minho, outro de Trás-os-Montes, ou não ficasse Salto numa zona de transição entre as duas regiões, cujas diferenças o pólo explora.
As divisões à volta do pátio, outrora cortes de bois, ovelhas, porcos, adega e armazéns agrícolas, são agora cenário de uma “aula” sobre como o homem domesticou a paisagem agreste. Mostra-se a importância da água para regar os pastos e moer o cereal (há dois moinhos, um mais antigo movido a água, outro eléctrico), uma diversidade de alfaias agrícolas (o arado das carrelas e do centeio, por exemplo), muitas vezes apresentada em madeira e ferro, mostrando a evolução. Fala-se do pastoreio na Serra da Cabreira: as cabanas dos pastores e a croça de juncos ou a capa de burel que usavam para se protegerem do frio. Antes da subida ao primeiro andar, uma “passagem” pelas extintas Minas da Borralha.
João Azenha, o arqueólogo responsável por este pólo, diz que “todos os objectos foram oferecidos ou emprestados pelos herdeiros da casa e pelos habitantes das aldeias de Salto”. Na cozinha tentou-se “reconstruir a original”, com o escano, a caldeira e a “burra”, que a arrastava para o lume. Não falta sequer o selo com que se decorava a manteiga. E a mesa está posta, com toalha de linho, pois claro. Na sala seguinte (a do tear quando a casa era habitada) é explicada ao pormenor a cadeia operatória do linho e da lã – da “estoquia” dos animais (como muitos diziam) ao produto final. Lembram-se os soqueiros e os tamanqueiros. Já à saída do pólo, apresentam-se os rituais de Inverno, como o pau de Natal e outros associados ao Entrudo.
Muitos dos objectos que vemos em Salto, encontraremos também nos pólos de Pitões das Júnias e de Tourém, aldeias do Parque Nacional da Peneda Gerês, ainda espelhos de outro tempo. São museus vivos, onde vemos de perto os animais, acompanhados por gente de alfaias ao ombro; onde cheira a lume; onde as vacas param no meio da aldeia a beber na fonte. Em ambos os casos, o Ecomuseu habita as antigas cortes do boi do povo. Para visitar os pólos à semana, há que pedir aos locais. Alguém encontrará a chave e orientará a visita. E também nestes casos foram os habitantes a ceder o que se vê. Em Pitões, a mais de 1200 metros de altitude, podem observar-se interessantes documentos da Comissão de Melhoramentos da Freguesia, com registos de contribuições em escudos, medicinas caseiras. Aqui, como em Tourém, as fotografias penduradas nas paredes (algumas bem antigas), levarão certamente a conversa para costumes que se foram perdendo. Como a serrada da Velha, que acontecia a seguir ao Carnaval: “Os miúdos juntavam-se, faziam velhas em palha que vestiam e depois iam pela aldeia com chocalhos e, a todas as velhotas que encontrassem, diziam tudo o que de mal sabiam delas”, lembra Maria Fernandes, responsável pelo pólo de Tourém. O presidente da Junta, Paulo Barroso, recorda a vezeira das cabras. Os donos revezavam-se para levar as cerca de 600 que havia na aldeia a pastar: “De manhã, o pastor tocava a buzina e ia juntando a vezeira. Estava o dia todo fora e às vezes, quando voltava ainda tinha de trazer cabritinhas que nasciam ao colo.” Na aldeia enfiada em Espanha, o contrabando vem sempre à tona. Pode-se fazer uma trilho pelos caminhos que se usavam para levar café para Espanha e de lá trazer bacalhau e azeite. É um percurso de 11 qquilómetros que passa pelo rio Salas, um dos melhores pontos de observação de aves migratórias da Península Ibérica. Graças a ele, em breve, este pólo será também Centro Interpretativo de Aves.
Antes de abandonar a aldeia, visite o forno comunitário todo em granito (até o telhado). Aí talvez ouça falar em casqueiro, que é como no Barroso se chama ao pão.
Ecomuseu do Barroso
Montalegre – Espaço Padre Fontes
T. 276 510 203
Seg-Dom 10h-12h30, 14h-18h
Salto – Casa do Capitão
T. 276 659 571
Seg-Dom 9h30-12h30, 14h-17h30
Pitões das Júnias
Sáb-Dom 10h30-12h30, 14h-17h
Tourém
Sáb-Dom e feriados 14h30-17h