A Polícia de Segurança Pública apresentou números oficiais sobre a criminalidade em Lisboa. Carlos Moedas não concorda com os resultados.
Os dados, a incluir no Relatório Anual de Segurança Interna, apontam uma queda de 12,6% na criminalidade geral e de 10,4% na grave e violenta. Que boa notícia! Achámos nós. Qualquer autarca celebraria o resultado, aproveitando para daí tirar crédito, merecido ou não. O Presidente da Câmara de Lisboa – que habitualmente celebra rankings do Instagram que elevam a cidade a melhor do mundo – mostrou-se “preocupado”. De onde virá esta desconfiança sobre os relatórios das forças policiais?
O tema da segurança entrou para a ordem do dia desde o célebre comunicado de Montenegro ao país, num espaço televisivo reservado a solenidades e emergências. Não existindo qualquer facto que justifique o alarme, sendo a segurança uma realidade e um “ativo” (em economês) para o país, para o turismo, para a atração de investimento, para a economia e a qualidade de vida em Portugal, é porque há interesse político.
Moedas fez download da receita. Em ano de autárquicas, o presidente incumbente prefere um debate estéril a partir das “perceções” de cada um do que falar da realidade: a crise da habitação, por exemplo, é uma realidade, ou a tragédia dos transportes públicos. O trânsito infernal é uma realidade. A extinção do comércio local, o despejo de instituições históricas, o deslaçamento dos bairros seculares, em prol da especulação imobiliária, são uma realidade. O aumento dos sem-abrigo é uma realidade. A aposta do município em iniciativas vazias de propaganda, em detrimento dos projetos comunitários, também. Interessa, portanto, instalar um debate superficial, o mais extremado possível, sobre “perceções” individuais. A ficção contra a realidade.
Para ajudar à cortina de fumo, o debate foi colocado num eixo absurdo. Acontece, convencionou-se, entre duas fações opostas: uma que dá importância à segurança, defende a polícia e reconhece que existe crime em Portugal; a outra que despreza o tema e quer abolir as polícias porque não existe crime em Portugal. Imbecil? Dá um jeitão que assim seja.
Ficou claro na cobertura mediática à manifestação “Não nos encostem à parede”, traduzida como protesto de um “extremo” – palavras do primeiro-ministro – “contra a polícia” – no léxico de vários canais informativos. Ninguém entre as dezenas de milhares de pessoas, oriundas dos vários quadrantes ideológicos (talvez só não do Chega, que tinha a sua própria festa de aniversário ali por perto), se pronunciou contra a existência da polícia, ou recusou importância ao tema da segurança. Ninguém. Não foi registada uma única declaração nesse sentido. Mas estamos assim. O sujeito ideal do totalitarismo, escreveu Hannah Arendt, não é o ideólogo convicto, mas a pessoa para quem a distinção entre facto e ficção deixa de existir.
Ironicamente, quem hoje mais questiona as forças de segurança é o senhor presidente da CML, ao contestar os relatórios policiais. Se vê necessidade de mais policiamento, porque não comunica responsavelmente às autoridades, ao invés do megafone mediático? É insólito que quem mais devia proteger os interesses da cidade use a sua plataforma para disseminar o pânico, falando ao país contra a polícia. Ficará, aliás, para a História da magna cidade a sua genial quote, quando confrontado com a evidência: “podemos ter um número menor nas estatísticas, mas a criminalidade é maior”. Em Lisboa, é a ficção que supera a realidade.
PS. Talvez por sorte ou por ser domingo, o autor redigiu este texto ao ar livre na perigosíssima cidade de Lisboa sem ser vítima de nenhum crime. Veremos como corre para a semana, que isto está um perigo.
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