Tínhamos despachado os últimos exames da faculdade. No meu caso, dei por terminada a saga que demorou cinco anos a chegar ao fim. Saí pela porta grande da faculdade com o sentimento de dever cumprido e o curso de direito no papo.
A viagem a Espanha acabou por traduzir-se numas férias revigorantes, num misto de cansaço e euforia. Todos os anos procuro passar para lá das fronteiras do país, de preferência de mochilas às costas e com muitos quilómetros de percurso, para caminhar.
Comigo, embarcou nesta aventura o António, velho amigo e compincha de viagens e jornadas além-mar. O objetivo traçado era chegar a Buñol no dia 29 de Agosto, precisamente no dia em que a pequena povoação nos arredores de Valência, se transforma num autêntico campo de batalha, onde a arma de arremesso é o tomate, apenas tomate.
Falo de uma das festas mais conhecidas de nuestros hermanos: A Tomatina. A confraternização acontece todos os anos, na última quarta-feira de agosto. É preciso chegar bem cedo para garantir um bom lugar e fintar o mar de gente que enche o centro de Buñol, porque é mesmo “tudo ao molho e fé em deus”.
Chegámos por volta das oito da manhã, vínhamos de Valência e a viagem de comboio demorou cerca de 45 minutos. Os bilhetes são comprados no próprio dia, ainda antes do nascer do sol, por volta das seis da manhã. Deve-se ir bastante cedo para garantir o ingresso e escapar às grandes filas.
Até apanhar o comboio, é altamente recomendado preparar o estômago e comer qualquer coisa, porque a fome fará sentir-se, mais cedo ou mais tarde. Um conselho: leve consigo um par de pacotes de açúcar. Muita gente junta, muito calor podem ser os ingredientes perfeitos para uma quebra de tensão.
Desde a estação até ao centro de Buñol passámos por várias barracas que ladeavam, à esquerda e à direita, o percurso feito pela multidão: churrascos, bebidas, música e afins. Um chinfrim que despertava a excitação para o grande acontecimento do dia, altura em que a vila é falada, um pouco por todo o mundo.
O ano de 2012 acabou por ser o último com entrada livre. A fama do evento tem garantido, ano após ano, uma adesão crescente de um público cada vez mais jovem e internacional. Muitas pessoas para um espaço tão exíguo, facto que levou a organização a alterar pormenores de logística para salvaguardar a segurança dos visitantes.
Deste modo se tencionar deslocar-se a Buñol para fazer parte desta festa rija, saiba que terá de comprar o seu bilhete, o quanto antes, porque a venda é limitada. O preço estabelecido é de 10 euros. Outra das novidades é o aumento do número de camiões e carregamentos de tomate – mais espaço que garante aos participantes mais margem de manobra e liberdade para fazer a festa e atirar tomates.
A Batalha Campal
Tudo começou na última quarta-feira de agosto, corria o ano de 1945, quando um conjunto de jovens se reuniu na Plaza del Pueblo para assistir a um desfile de cabeçudos e gigantones. A euforia da multidão fez com que um dos participantes do desfile caísse no chão. O visado vingou-se dos espetadores e começou a acertar em tudo que estava no seu caminho. Nas proximidades do incidente havia uma banca de verduras e os presentes no local começaram a atirar legumes, uns contra os outros.
O incidente transformou-se em festa, e a festa virou tradição. O evento sofreu um interregno na década de 50, mas começou a ganhar visibilidade no resto de Espanha a partir dos anos 80, depois de ter sido emitida uma reportagem sobre o acontecimento, na televisão.
O epicentro do alvoroço continua a ser a Plaza del Pueblo, quase 70 anos depois da primeira Tomatina. O espaço é muito pouco para tanta gente junta. Por vezes, é difícil manter os dois pés no chão ou escapar a um valente encontrão.
À medida que o tempo passa mais exaltado se fica. Durante cerca de hora e meia assistem-se às tentativas goradas dos mais destemidos, que querem alcançar o naco de presunto preso no cimo de um mastro de madeira untado com sebo. Trepam, escorregam até que há um que acaba por conseguir. É o tiro de partida da guerra de tomate, já depois das 11 da manhã. Pelo meio foram disparados muitos litros de água sobre os mais de 50 mil parodiantes no local, com muita música e diversão à mistura.
São seis, os camiões carregados com mais de 120 mil quilos de tomate. Para que eles possam atravessar a praça, as pessoas são obrigadas a abrir caminho, num processo confuso e muito pouco seguro, impróprio para claustrofóbicos, grávidas, crianças e idosos. Nesse momento o imperativo é não cair e manter cotovelos cerrados e mãos para cima.
Antes de atirado, o tomate deve ser esmagado para que não cause ferimentos ao alvo do lançamento. Escusado será dizer que a roupa fica inutilizada e que o sumo de tomate é extremamente ácido, pelo que deve levar consigo calçado confortável e aderente, uns calções de banho baratos, óculos de piscina ou mergulho, para proteger os olhos, e apenas os pertences indispensáveis, devidamente acautelados. Nada de mochilas, nem grandes complicações. A festa é única e característica, digna de registo, para mais tarde recordar: compre umas máquinas descartáveis à prova de água.
Entre a passagem de cada camião é feita a descarga do tomate que sobra e a rua volta a ser tomada pela multidão que vai chapinhando na maré vermelha e aproveita para bombardear-se efusivamente com o que resta do fruto esmagado.
Depois do toque da buzina, são enterrados os machados de guerra. Os habitantes de Buñol abrem as janelas e despejam água sobre os foliões, para limpar a sujidade. Há também chuveiros espalhados pelas ruas adjacentes. É um momento de grande confraternização e proximidade, onde não há idioma, porque está ali um pouco de todo o mundo e somos todos iguais.
O resto das mazelas de batalha cura-se no rio Buñol, debaixo da ponte. Ainda assim é possível que nos dias posteriores restem cascas ou sementes de tomate, nas barbas, cabelos e ouvidos.
O regresso a Valência fez-se no próprio dia, a meio da tarde, porque não vale a pena ficar mais tempo na vila. E lá voltámos, sentados no chão do comboio, cheio de gente, a feder a suor e tomate, a euforia dava agora lugar ao sossego.
Quem corre por gosto não cansa.