– Disseste que precisavas de tempo para responder.
– Sim, para responder com sinceridade.
– A pergunta era: a solidão pesa-te?
– Não se trata de pesar ou não. A solidão é mais do que um fardo que carrego, é o próprio chão que não me liberta. Um buraco negro, às vezes.
– Foi isso que concluíste?
– Não. Isso já eu sabia. A solidão pesa-te? foi uma provocação vossa. A pergunta era: as palavras – as palavras escritas, as palavras lidas – têm o poder de me suspender sobre o abismo, uma espécie de poder antigravitacional? Foi nisso que estive a pensar.
– A solidão não é nenhum abismo. É esse o perigo: as palavras escritas transformam-se facilmente num jogo, uma brincadeira fora da vida.
– Acham, então, que vivo dentro de historietas de encantar, de conhecimentos inúteis, que ando perdida num delírio? Consideram-me alienada, é isso?
– Nós é que somos os aliens, os extraterrestres, uma espécie de extraterrestres.
Riem-se muito com as suas bocas desdentadas.
*
O Círculo de Leitores presenteava os novos sócios com um livro surpresa. Calhou-me Os Extraterrestres na História, de Jacques Bergier. Li-o de supetão, mais seduzida do que receosa com as visitas de alienígenas ao nosso planeta. Levei-o para a escola e passeei-me com ele nos intervalos como fizera com outros livros não aconselháveis para a minha idade. Quase nenhum dos meus amigos gostava de ler. Os poucos que liam, faziam-no sob a supervisão de adultos que invariavelmente sugeriam o Diário de Anne Frank ou O Meu Pé de Laranja Lima. Sentia-me superior aos meus colegas por ler livros que nos eram proibidos. (Muitas vezes, a rebeldia não é mais do que a solidão disfarçada.)
Quando me viu com o livro na mão, o André, um colega de turma que tirava negativa a quase todas as disciplinas e que se vestia como se fosse um punk precoce, abordou-me: estava eu a par das marcas quadriculadas que os extraterrestres deixavam na pele daqueles que abduziam e dos círculos de terra queimada que as naves faziam onde aterravam? Reconhecendo-me iniciante na matéria, o André propôs-me uma troca: eu ajudava-o com os trabalhos de casa e ele levava-me ao Clube dos Amigos dos OVNIS de que o pai dele, o Sr. Bernardo, era o presidente. O nosso acordo teria de ser secreto pela natureza do que estava envolvido. Fiquei a saber que as reuniões decorriam aos sábados à tarde na garagem da casa dos pais do André e que o Clube contava com nove elementos. Eu podia vir a ser o décimo. O Sr. Bernardo tinha um telescópio apontado ao céu e havia noites em que se viam passar naves de um lado para o outro. O André garantia que humanoides verdes de cabeça triangular, descendentes da Atlântida, estavam a favor dos Estados Unidos da América e que outros, cinzentos com olhos de sapo, herdeiros dos construtores das pirâmides do Egito, protegiam a União Soviética. Estes dois exércitos de humanoides existiam além do que os telescópios humanos conseguiam ver e eram eles que nos mantinham a salvo de uma Terceira Guerra Mundial. Como é que vocês sabem isso?, perguntei, Evidentemente que há humanoides que vêm cá controlar o que se passa, tens de me prometer que não voltas a fazer perguntas parvas como essa, senão não te posso levar para o Clube, repreendeu-me o André, Não podemos perder tempo com parvoíces, há muita coisa em jogo, percebes?
No sábado seguinte, em troca de um trabalho de História sobre a Rota da Seda, apanhei a camioneta para a Abuxarda e fui a casa do André participar no primeiro encontro do Clube.
*
Estão ofegantes de tanto se rirem. Receio que tenham uma apoplexia, que morram de novo e eu os perca de vez. Enfrento as sete gerações que precedem a dos meus pais. Sei que são eles, apesar de só reconhecer os meus avós. Cercam-me. Quase ameaçadoramente. Falta o meu avô António.
– Eis os últimos analfabetos da família. Espera-se que sejamos os últimos.
Mais risos.
– Histórias e conhecimentos. Então é por isso que te isolas nos livros, Dulcinha?
Reconheço a ironia.
– Isolar não será a palavra certa.
– Também nós, enquanto vivemos, precisámos de histórias e de conhecimentos – úteis ou inúteis – tanto quanto tu e os teus contemporâneos. Tivemo-los em quantidade bastante, que histórias e conhecimentos não têm de estar escritos para existirem. Passavam de boca em boca, vindos sabe Deus de onde, das profundezas da criação. As terras onde andávamos à jeira existiam com dono, mas as palavras pertenciam a todos por igual. Só sabíamos de onde vinham as que o padre dizia na missa: palavra do Senhor!
– Graças a Deus!,
respondem os outros, em uníssono.
– Nem livros nem autores. Bastávamo-nos uns aos outros. Em pessoa. Cada um ajeitava o que ouvia a seu modo e passava-o a quem quisesse.
– Era ainda assim com as anedotas quando eu era nova,
deixei escapar. Não resisti ao lamento,
– Já ninguém entretém os amigos a contar anedotas.
– As redes sociais também acabaram com isso. Nunca se leu nem escreveu tanto quanto agora, e as pessoas talvez nunca tenham estado tão sós. Vivem acompanhadas por uma infinidade de ausentes.
– Redes sociais?
– Escusas de fingir estranheza. Nós somos tu a pensar-nos. Conhecemos tudo o que tu conheces. Já o contrário não é verdadeiro: o passado visto do presente é omnisciente do presente que desconhece em grande parte o passado. Por isso podemos falar de aliens e de redes sociais.
Rimo-nos todos.
– Já estamos juntos há tempo bastante para podermos dizer o que nos apetece sem estarmos sempre a embrulhar tudo para oferta.
– Que não passe a ideia de que por termos sido analfabetos fomos mais felizes ou menos sós. Claro que gostaríamos de ter sabido ler e escrever.
– A vara que um homem estende a outro homem tanto serve para mantê-lo à distância como para guiar um em direção ao outro até as mãos se tocarem, até as bocas se beijarem.
Digo,
– O autor chega, arranca-me do quotidiano, chama-me para um encontro privado, íntimo, só ele e eu, como se não tivéssemos corpos estanques. Depois, devolve-me, diferente, ao sítio onde me apanhou. Coscuvilho o sucedido como quem inconfidencia proezas de amantes. 
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