Vivemos hoje num mundo mais perigoso, mais incerto e vulnerável a maiores ameaças do que aquele em que estávamos quando, há oito anos, António Guterres foi eleito, por unanimidade, para secretário-geral das Nações Unidas ‒ um cargo justamente conhecido como “o emprego mais difícil do mundo”, conforme foi cunhado pelo seu primeiro ocupante, o norueguês Trygve Halvdan Lie, há quase oito décadas. A realidade é indesmentível: a mais e maiores guerras no Médio Oriente, na Ucrânia e no Sudão somam-se muitas outras tensões geopolíticas, de desfecho incerto. A democracia está em regressão, segundo os indicadores mais fiáveis, e as crises migratórias afetam todas as regiões, impulsionadas pela violência e a fome. A desigualdade económica continua a ser um rastilho que alimenta convulsões, fomentadas também pelos radicalismos ideológicos e religiosos. Ao crescente impacto das alterações climáticas na vida das populações soma-se agora a incerteza provocada pelas transformações que a massificação da Inteligência Artificial poderá provocar no mercado de trabalho. O pior, no entanto, não é esta singular acumulação de tantos riscos globais, mas sim o facto de existir muito menos vontade de cooperação entre países e regiões para enfrentar tão grandes ameaças, ou seja, a perceção crescente de que as Nações Unidas estão a falhar precisamente na missão fundamental para que foram criadas: a de garantir um mundo de paz e segurança, assente nos ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É verdade que, apesar das altas expetativas nele depositadas há oito anos, António Guterres não conseguiu mudar o mundo para melhor. No entanto, tem feito algo de que muito poucos podem dizer o mesmo: tem tentado mudar o mundo, tem insistindo, sempre que pode e em qualquer ocasião, nos alertas para os riscos, na denúncia dos atropelos e atrocidades, na defesa do diálogo, do multiculturalismo. Num tempo em que todos criticam, com excessiva facilidade, a organização criada sobre as ruínas da II Guerra Mundial, Guterres tem sabido ser fiel ao que é mais importante: os princípios basilares da Carta das Nações Unidas, o documento que tantos governos assinam, mas poucos respeitam, sempre prontos a beneficiarem com os interesses próprios em detrimento dos que deveriam ser universais.
É fácil atacar António Guterres, ao imputarem-lhe resultados que estão muito além das competências e limitações do seu cargo. E também se tornou moda, em certos círculos, criticar Guterres por ele apenas proferir frases bonitas e não as conseguir transformar em ação. No entanto, o que se pede a um secretário-geral das Nações Unidas é que ele consiga ser uma voz lúcida, esclarecida, sensata e justa para o mundo. Uma voz que saiba aliar a prudência com a neutralidade inerente ao cargo, e exercida de forma profissionalmente diplomática.
Nos tempos difíceis e tumultuosos em que vivemos, o secretário-geral das Nações Unidas tem de ser aquilo que Guterres demonstra: uma voz inspiradora e corajosa, comprometida com o respeito incondicional dos direitos humanos, em todas as vertentes e situações.
E isto não é coisa pouca. Num mundo em que, a uma velocidade estonteante, os líderes políticos mudam depressa de opinião ou alteram os seus argumentos, de acordo com as regras da popularidade, António Guterres tem sabido ser sempre insistente nos mesmos temas e princípios. Na batalha pela atenção das audiências globais, Guterres não cede à ditadura dos algoritmos ou às sondagens de opinião. Mesmo correndo o risco de ser mal interpretado ou considerado cansativo, ele fez da insistência na determinação das suas convicções a principal arma. E, nos dias que correm, essa é uma excecional virtude. Até porque os seus temas de eleição não mudaram desde o dia que tomou posse: o desafio climático, a necessidade de cooperação, a luta pela paz, o combate à desigualdade, a defesa da democracia.
Enquanto muitos desistem, Guterres tem sabido usar a sua voz como exemplo. Por isso, quando grande parte dos líderes mundiais começa a meter a agenda climática “na gaveta”, com receio da reação popular, Guterres não se tem calado a alertar o mundo para tudo o que ainda é preciso fazer para evitar, como sublinhou, já não o aquecimento global mas sim a era da “ebulição global”.
É verdade que o mundo ficou pior nestes anos. Mas também é verdade que, naquele cargo e neste tempo, dificilmente alguém poderia ter feito melhor. A incapacidade manifestada por Guterres para mudar o mundo é, na realidade, a prova provada de que as Nações Unidas precisam de uma reforma, de um Conselho de Segurança que reflita a realidade atual. E, enquanto isso não acontece, ainda bem que há uma voz que insiste em não se calar, na defesa do idealismo das Nações Unidas.
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