“António Guterres era um jovem inteligente e progressista, que fazia parte do nosso grupo da Terceira Via, tal como o presidente da União Europeia, Romano Prodi.” Esta tinha sido, já, a primeira impressão do antigo Presidente norte-americano Bill Clinton, e ficou registada nas suas memórias (“A Minha Vida”, edição Círculo de Leitores). Neste excerto, o Presidente dos EUA descrevia uma deslocação a Portugal, na primavera de 2000, no âmbito de um périplo europeu. Mas ele já havia recebido Guterres, durante uma visita do chefe do governo português à Casa Branca, três anos antes. Naquela manhã, Clinton, que tinha fraturado uma perna e se encontrava de péssimo humor, surpreendeu a imprensa norte-americana ao aparecer, sorridente, muito bem-disposto, ao lado daquele desconhecido, baixote e com ar hispânico. De repente, o primeiro-ministro português, que já surpreendera, numa cimeira Europa-Ásia (como veremos adiante), parecia uma estrela fulgurante. E a secretária de Estado Madeleine Albright guardaria dele uma forte impressão, o que, em 2005, viria a ser decisivo na escolha do seu nome para dirigir a importante agência da ONU, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados).

Este mesmo homem, que Clinton descobriu e Kofi Annan, carismático secretário-geral da ONU (1997/2006), consagrou, é o favorito para ser contemplado com o Prémio Nobel da Paz. Por ironia, isto ocorre na própria semana em que um país em guerra, Israel, o declara persona non grata e o proíbe de entrar no seu território. Os israelitas lançam, assim, uma “fatwa” inédita sobre um secretário-geral da ONU, e logo, talvez, àquele que, na História da instituição, mais vocal tem sido nos apelos à paz, nos aflitos alertas contra as alterações climáticas e nos lancinantes pedidos para que haja mais solidariedade para com os desvalidos deste mundo.
Timor na base de uma reputação
Em setembro de 1999, António Guterres mostrava a força do seu soft power, perante uma grande potência. O chefe do governo português move mundos e fundos para forçar a entrada de um contingente da ONU no território de Timor-Leste. Um telefonema pungente ao Presidente norte-americano será decisivo. Viviam-se dias de brasa nas terras de Lorosae, depois do referendo de 30 de agosto desse ano, no qual a esmagadora maioria do povo timorense, que compareceu em massa nas urnas, votou pelo “sim” à independência. Em retaliação, milícias pró-Indonésia devastavam o território, matando, violando e incendiando, numa espiral de violência que o exército indonésio – suposto garante da sua segurança – incentivava. Só uma palavra do homem mais poderoso do mundo poderia convencer o clientelar regime de Jacarta a retirar e a dar lugar a uma verdadeira força de paz. E o governo português ameaçou mandar regressar tropas nacionais que participavam em missões da ONU, nomeadamente, na Bósnia e no Kosovo, caso Washington nada fizesse. Mas foi a diligência de Guterres que desbloqueou a situação: com as ruas de Lisboa inundadas de branco, com manifestações em solidariedade com Timor, Guterres ligou para a Casa Branca e falou com o amigo Bill: “Caro Presidente, liga lá a CNN e vê o que se está a passar em Lisboa.” Guterres apelou a Clinton falando-lhe dos sentimentos dos portugueses (um dos povos mais pró-americanos da Europa, mas que, por via desta crise, estava a resvalar para o antiamericanismo) e fez a necessária chantagem emocional. Ato contínuo, Bill Clinton, em pessoa, leu uma declaração ao mundo, transmitida pelas cadeias internacionais: “A Indonésia deve aceitar a ajuda das forças da ONU em Timor-Leste.” Era a vitória.
As muitas diligências pessoais e diplomáticas de Guterres já lhe aplainavam o caminho, na ONU. Kofi Annan, então secretário-geral da organização (e futuro Nobel da Paz), era um aliado da causa de Timor. E Guterres ficou-lhe na retina: “Homens assim é que precisamos de ter aqui connosco”, comentava o secretário-geral. Anos depois, na recomendação de Madeleine Albright, para que Guterres viesse a ser o homem forte do ACNUR – uma proeminente posição política que reporta diretamente ao secretário-geral –, a velha amiga, com a autoridade de representar o país principal financiador da agência, diz, preto no branco: “É uma personalidade internacional brilhante!” Nesta altura, Bill Clinton já o trata, em público, por “grande amigo” e empenha-se na nomeação, quando o português disputa o lugar contra sete adversários muito fortes e que, na altura, eram uma espécie de “tropa de elite” da política internacional. A 25 de maio de 2005, Kofi Annan anuncia a decisão e, na comunicação, enfatiza o papel de Guterres na resolução do problema de Timor, uma antiga pedra no sapato da ONU. No funeral de Annan, em Accra, em setembro de 2018, Guterres há de discursar: “Ele era um bom amigo e partilhámos juntos muitas causas. E, quando o ACNUR precisou de uma nova liderança, Kofi abençoou-me com a sua confiança.”

Timor – voltamos à Oceânia – é, aliás, muito simbólico da sua própria afirmação internacional. E é-o desde o início. Quando ninguém o conhecia, primeiro-ministro novato, no ano de 1996, viu-se no meio de um encontro UE-Ásia, na Tailândia. Numa reunião informal, antes da cimeira, Guterres levanta-se e dirige a palavra ao poderoso ditador da Indonésia, Hadji Mohamed Suharto. O português estava avisado: os seus pares europeus não tolerariam que o “irritante” entre Portugal e a Indonésia, o minúsculo e irrelevante território de Timor-Leste, estragasse um evento crucial para o bom andamento dos negócios. Os indonésios tinham ameaçado que se retirariam se o assunto viesse à baila e o primeiro-ministro britânico, John Major, propôs que se retirasse a palavra a quem mencionasse o tema. Mas Guterres não recua. Com todos instalados em confortáveis poltronas, num luxuoso salão oriental, o jovem governante português interpela o Presidente indonésio: “Liberte Xanana Gusmão [líder da resistência timorense, preso em Jacarta] e Portugal aceitará a abertura de secções de interesses dos nossos países, em embaixadas amigas, em Jacarta e em Lisboa.” Ninguém esperava isto: nem os europeus, nem os asiáticos, nem os próprios membros presentes da diplomacia portuguesa. Suharto não disse nada. Mas também não se retirou da sala. Na abertura dos trabalhos, no dia seguinte, Guterres concordou que os assuntos bilaterais entre os países presentes não deviam ser trazidos para a reunião, mas avisou que Portugal tinha um desses assuntos pendentes… Depois de uma pequena pausa de suspense, prosseguiu: “É com a China e refere-se à transferência de Macau. Mas esse está a ser resolvido. Já a questão de Timor-Leste não é bilateral, mas sim multilateral, no âmbito da ONU. E já tive oportunidade de propor ao Presidente Suharto uma saída para o problema de forma a chegarmos a uma solução por etapas.” A habilidade construtiva de Guterres caiu bem e o seu talento diplomático iniciava a sua lenda. Muito depois, em outubro de 2016, e após ter passado com distinção e votações favoráveis em sucessivas audições aos candidatos, o irreverente primeiro-ministro júnior de dez anos antes era eleito para o cadeirão mais alto da ONU. O Conselho de Segurança aclamou-o, por unanimidade, para suceder ao coreano Ban Ki-moon e o embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin, anunciou a decisão: “Tem grandes credenciais ao nível da ONU; é um político de alto nível, que fala com toda a gente e escuta toda a gente e expressa francamente a sua opinião; é uma excelente escolha.”
Bater o pé na Europa
Já no governo, uma década antes, António Guterres preferira sempre os grandes palcos internacionais, onde se movia como peixe na água, às chatices da política nacional e ao fardo da governação. A “sua praia” foi a presidência europeia, que exerceu em 2000, e de onde saiu a Agenda de Lisboa. Nesse documento, foi precursor na aposta na inovação, no conhecimento e na educação como alavanca do desenvolvimento da União. Em Lisboa, entregava o governo a superministros como Pina Moura, João Cravinho, Ferro Rodrigues e Jorge Coelho. Na presidência europeia, consegue ser bastante mais firme do que no governo, recusando conversas com o austríaco Jörg Haider, o primeiro líder de extrema-direita europeu a ascender a um governo da União e rapidamente ostracizado por causa da sua intenção de adotar políticas xenófobas.
Antes da assinatura do Tratado de Nice, Guterres liderara uma revolta dos países pequenos contra o diretório dos grandes. Os franceses queriam assegurar a hegemonia dos grandes nas votações decisivas na UE, mas Guterres bloqueou a decisão até ao fim e, um a um, conseguiu convencer vários parceiros e até a Alemanha aquiesceu. No final de reuniões tensas, França viu-se subitamente isolada e foi obrigada a negociar com Portugal.

Em 1998, António Vitorino percorre a Europa a reunir apoios para a candidatura de Guterres à presidência da Internacional Socialista (IS, cargo que viria mesmo a exercer) e qual não é a sua surpresa quando ouve, de todos os lados: “Porquê para a IS? Ele vai dar é um excelente sucessor de Jacques Delors, na presidência da Comissão Europeia.” E o próprio Jacques Delors, já depois de retirado, elegia Guterres como seu delfim. Numa reunião do Conselho Europeu, na Alemanha, os então Quinze apoiam-no explicitamente: “É o homem certo para conduzir a Europa na fase de abertura da União a Leste.” Mas o futuro não passava por aí. À política interna somou-se o problema pessoal: Guterres enviuvara recentemente e ficara com uma filha pré-adolescente a cargo (Mariana, a mais nova do casal de descendentes). Não concebia mudar-se para Bruxelas. O comboio passou, e não voltou à mesma estação. Em 2004, no apeadeiro seguinte, seria apanhado por Durão Barroso.
Em estágio para a ONU
Quando Guterres, em dezembro de 2001, bateu com a porta e abandonou o “pântano”, ficou um tanto ou quanto desasado. Vinte e oito anos depois de ter deixado a vida “civil”, estava outra vez por sua conta. Tinha casado de novo, com Catarina Vaz Pinto, e queria refazer a sua vida. O trabalho no gabinete do Banco de Portugal, onde foi colocado, dava-lhe tempo para outras atividades que lhe limpassem a cabeça. Numa iniciativa que nunca quis ver coberta pelos média, voltou ao voluntariado, dando explicações de Matemática a alunos desfavorecidos do bairro da Quinta do Mocho. Lembrava-se bem das atividades dos anos 60, na JUC (Juventude Universitária Católica) e no assistencialismo social. Conhecia bem as barracas, os bairros degradados e a miséria humana. Membro do CASU (Centro de Assistência Social Universitária), sujou os sapatos, no terreno, quando as grandes cheias de 1967 fizeram centenas de mortos na Grande Lisboa.

Adelino Amaro da Costa tentara recrutá-lo para o Opus Dei (sem sucesso) e o padre António Alves de Campos convencera-o a colaborar numa ação da Mocidade Portuguesa, onde foi fazer perguntas “incómodas”, sendo rapidamente descartado. Guterres, sem grande espessura ideológica, é ainda um “apolítico”, mas a experiência de vida empurra-o para um indefinido posicionamento nas áreas sociais. Quando adere ao PS, o mesmo prelado espanta-se: “Eu esperava ver o meu amigo a aderir ao CDS, no máximo, ao PPD… Mas o PS? Não é um comunismo adocicado?” Guterres respondeu da forma mais pragmática: “O PS é o partido que me dá mais possibilidades de pôr em prática as minhas ideias sociais.”
Passada a desilusão do poder, Guterres sonhou com um lugar internacional de destaque que voltasse a permitir-lhe aplicar tais ideias. A vaga no ACNUR era perfeita. Nos bastidores, o antigo primeiro-ministro mexe os cordelinhos. Clinton ainda “manda no mundo”, a amiga Albright engraçou com ele, Kofi Annan já lhe disse que precisa de o ter a seu lado. No final da primavera de 2005, o lugar será seu.
A primeira missão
A 23 de junho de 2005, a VISÃO, que acompanha, de forma histórica, a sua primeira missão na ONU, como diretor do ACNUR, em visita a campos de refugiados no Uganda, escreve na sua reportagem: “O pequeno bimotor das Nações Unidas, que o transportava desde Entebbe, pousava, com uma guinada lateral, no Noroeste do Uganda, na pista de terra batida de Arua, pouco mais larga do que as picadas que, de jipe e aos solavancos, o novo alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados haveria de percorrer, nos três dias seguintes.” E o relato prossegue, agora de uma forma retrospetiva: “Cerca de dez horas antes, no conforto da classe executiva do voo BA63 da British Airways, que o levou de Londres para as margens do lago Vitória, Guterres esclarecera-nos: ‘Pedi para dormir, amanhã, exatamente nas mesmas condições em que está instalado o nosso pessoal do ACNUR.’ Ao final da tarde de segunda-feira, fizeram-lhe a vontade. Esperava-o o branco-sujo de uma exígua tenda. Lá dentro, um divã, uma cadeira e uns chinelos de quarto. Cá fora, mais quatro barracas iguais, armadas ao lado dos casinhotos da base do ACNUR no distrito de Yumbe. Ainda o capim, as mangueiras dispersas, as plantações de tabaco e de milho, a solidão. E nuvens carregadas. Senhor engenheiro, bem-vindo ao mundo real.” A primeira missão de Guterres foi a de chamar a atenção para o tema dos refugiados. Essa mensagem seria transmitida, naqueles três dias, em declarações a consecutivos serviços noticiosos da BBC. E o antigo primeiro-ministro português, progressivamente mais mediático, que se lançara numa operação pouco comum e raramente vista em altos-comissários seus antecessores, recebeu mesmo uma chamada, por telefone satélite, em plena picada africana, para um direto de som na CNN… O faro mediático de Guterres confirmou-se quando conseguiu convencer a estrela de Hollywood Angelina Jolie a tornar-se uma espécie de embaixadora do ACNUR, com a atriz a acompanhá-lo, no terreno, em diversas ocasiões. Uma boa maneira de chegar à opinião pública mundial…
Os 193 patrões de Guterres
Um dos antecessores de António Guterres costumava dizer que ocupava o emprego mais difícil do mundo: ele tinha de reportar a 193 patrões, tantos quantos os países que fazem parte da organização. Se a esta Babilónia de “chefes” juntarmos o facto de estarem, em grande parte, desavindos, despejando sobre a cabeça do “funcionário” ordens, instruções e desejos contraditórios, ficaremos a perceber como é difícil dar conta do recado. Um dos “bosses” acaba de cortar definitivamente com o “empregado” e proíbe-o de visitar o seu “gabinete”. Israel ofendeu-se por Guterres, supostamente, não ter condenado o recente ataque de mísseis iranianos sobre solo israelita – coisa que fez, embora sempre colocando o caso em perspetiva e aludindo aos riscos de escalada de guerra na região, pedindo, pela enésima vez, contenção a todas as partes. Guterres é o secretário-geral de uma organização com muitas sensibilidades e os países árabes (e outros tantos também muçulmanos) formam um respeitável contingente. Um diplomata retirado diz-nos que Guterres, sem deixar de condenar o terrorismo do Hamas, não pode deixar de mostrar compreensão pela sensibilidade árabe, relativamente à situação do povo palestiniano. Guterres tem seguido de perto as resoluções das Nações Unidas e o discurso, por ser muito equilibrado – condenando o Hamas e o Hezbollah mas também a desproporção da reação israelita –, não agrada a Telavive, que interpreta qualquer reparo à sua política como uma posição antissemita.

Não é a primeira vez que Guterres é atacado por defender causas que os países não entendiam, antes, como fazendo parte das competências de um secretário-geral. Por exemplo, ter recebido a ativista Greta Thunberg e pontuar as suas intervenções pelos apelos ao combate ativo às alterações climáticas pode ser surpreendente, mas também contará para o reconhecimento dos decisores do Nobel. Guterres faz uma interpretação muito literal dos ensinamentos de Kofi Annan, que citou no discurso proferido durante o enterro do antigo diplomata ganês: “Por favor, continuem, dizia Kofi! Vocês sabem o que têm de fazer: Tomem conta uns dos outros! Tomem conta do nosso planeta!” Ora, são precisamente essas causas, bem como a sua voz, que, embora pareça pregar no deserto, continua a insistir, a insistir e a insistir, que lhe terão valido a dianteira na bolsa de apostas para o galardão do Nobel. O mesmo diplomata anteriormente citado reconhece que se nesta sexta-feira o prémio for para Guterres, isso dará uma visibilidade maior à sua intervenção, e também muito mais credibilidade ao que vier a dizer, daqui para a frente. O reconhecimento do Comité Nobel Norueguês costuma conferir um suplemento de respeitabilidade aos laureados. Afinal, como disse o 2º secretário-geral da história das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjöld, “este cargo não foi criado para levar a humanidade ao Paraíso, mas para a livrar do inferno”.
A Parábola dos Talentos
A vocação de Guterres tem um lado místico bastante forte e ele costuma citar, por tudo e por nada, a Parábola dos Talentos, referida, nos Evangelhos, embora com duas versões diferentes, por Lucas e Mateus. Guterres faz uma interpretação que o tem guiado toda a vida, como uma exortação a que cada um use os seus “talentos” (que, literalmente, eram uma moeda corrente no tempo de Cristo) como dons doados por Deus, para que sejam colocados ao serviço dos outros. Esse é o alfa e o ómega da sua ética moral, embora, na sua ascensão ao poder, tenha recorrido aos truques habituais da mais rasteira luta política… Mas foi a Parábola dos Talentos que o levou para a política, ironicamente por influência do maçon agnóstico António Reis, cofundador do PS. No início dos anos 70, Guterres assistiu a uma palestra deste então colunista da Seara Nova, que habilmente utilizou a mensagem do Concílio Vaticano II para atrair os católicos para as causas do tempo. A palestra tratava disso mesmo: no quadro do salazarismo/marcelismo, não bastava aos católicos seguir o cristianismo no recato dos altares, era preciso agir. Não admira que tenha sido António Reis a apadrinhar a sua posterior inscrição como militante do PS…

O homem que, nos anos 70, fundara a DECO assina, na sequência do desastre eleitoral do PS de Jorge Sampaio, em 1991, o “livro de reclamações” do partido: perante as câmaras de televisão, e com ar grave, declara-se “profundamente chocado”, o que é interpretado como uma declaração de guerra à liderança socialista. Começa uma luta fratricida que resulta na sua eleição como secretário-geral em 1992. Em Belém, está instalado o patriarca Mário Soares, que olha com condescendência aquela travessia do deserto, até 1995. Num jantar privado, Soares solta uma obscenidade: “Bolas, estava a dizer mal do Guterres, já mordi a língua…” E tinha razão para a morder: com a ideia dos Estados Gerais, o líder socialista começa a construir um projeto atrativo, que penetra na sociedade civil. Em modo soft power, como sempre, aproveita a agonia do cavaquismo. Percorre o País ouvindo ópera, em altos berros, nas aparelhagens das viaturas, e quase ensurdecendo os motoristas. Espera-o a ascensão e a queda. Nos seus governos, tendo dito que não havia jobs for the boys (foi ele o introdutor da expressão no léxico político português), permitiu que os socialistas açambarcassem os cargos do Estado. Tendo jurado que, entre a espada e a parede, preferia a espada, acabou por fazer passar o iníquo Orçamento “limiano”, “comprando” o voto de um deputado do CDS. A ponte de Entre-os-Rios ruiu ao ritmo da própria derrocada do governo e é um primeiro-ministro de olhos tristes, sem a energia de um Pombal, que visita, compungido, como um cangalheiro, o cenário do desastre.
Zangado com o País, jura que não voltará à política nacional – e será escusado o PS pensar nele para as próximas presidenciais. (Aliás, como escreveu a VISÃO, há muitos anos, num perfil sobre o atual comentador da SIC, “Marques Mendes só tem menos três centímetros do que Guterres”…) Há de reerguer-se, não na sua terra, onde os profetas costumam falhar, mas longe dela, onde costumam vingar. A ONU é o seu destino. O português atípico que detesta bacalhau mas não resiste aos pastéis de nata, poliglota, cosmopolita, mal se lembrará, agora, das temporadas da sua infância, em Donas, no Fundão, onde, na pele do pequeno Tonico, dera nas vistas, como acólito, perante o olhar embevecido do pároco Alfredo Fernandes. Estaria ali o começo de uma brilhante carreira eclesiástica? A vida profana levou-o, não a bispo, nem a Papa, mas a chefe de governo e a secretário-geral da ONU. Nas missas existe o momento da “paz dos fiéis”, quando o celebrante diz: “A paz esteja convosco.” Mas Guterres, que poderá sonhar, esta noite, com o Nobel da Paz, está proibido de visitar o local onde Cristo nasceu. Talvez Oslo seja a sua próxima terra prometida.
Frases para a História
“A Humanidade abriu as portas do inferno”
Cimeira das Nações Unidas sobre a Ambição Climática – Setembro de 2023
“A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou. O ar é irrespirável. O calor é insuportável. E o nível de lucros dos combustíveis fósseis e a inação climática são inaceitáveis”
Conferência de imprensa sobre a superação dos recordes de calor, em vários anos consecutivos – Junho de 2023
“A Humanidade tornou-se uma arma de extinção em massa”
Conferência da ONU sobre Biodiversidade – Dezembro de 2022
“O mundo está numa autoestrada para o inferno climático com o pé no acelerador. A Humanidade tem uma escolha: cooperar ou morrer”
Discurso de abertura da COP 27, em Sharm-el Sheik, Egito – Novembro de 2022
“É imoral que as petrolíferas e as empresas de gás estejam a fazer lucros recordes a partir da crise energética e graças às pessoas e comunidades mais pobres, com um custo enorme para o clima”
Discurso, em Nova Iorque, a apelar aos governos para taxarem os lucros excessivos das petrolíferas – Agosto de 2022
“Se não mudarmos a nossa vida, podemos já não ter vida para mudar”
Na abertura da Cimeira do Clima, em Madrid – Dezembro de 2019
“Temos um mundo em pedaços, temos de ter um mundo em paz”
Discurso na abertura da 72.ª Assembleia Geral das Nações Unidas – Setembro 2022
“É importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestiniano está sujeito a 56 anos de ocupação sufocante (…) Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os ataques terríveis do Hamas. E esses ataques terríveis não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano”
Intervenção sobre o Médio Oriente, no Conselho de Segurança, após a resposta de Israel em Gaza aos atentados do Hamas – Outubro de 2023
“As pessoas não precisam de líderes que invoquem os impulsos mais sombrios da Humanidade, alimentando o medo, a insegurança e mentiras descaradas. Elas precisam de líderes que invoquem o que há de melhor em nós – honrando a dignidade humana e aproveitando os talentos, as ideias e as energias de cada pessoa”
Declaração sobre a Democracia – Dezembro de 2021