A Conservação da Natureza (CN) em Portugal é sinónimo de proibição. Ao fim de décadas, o conceito e a prática de CN são tão retrógrados e arcaicos que nos afastam da Natureza e de tudo o que esta tem de bom para nos oferecer. Estranhamente, a Natureza por cá não é uma mais-valia, é uma limitação. Em Portugal não é bom viver num Parque Natural, os constrangimentos são tantos que fazem com que os portugueses estejam de costas voltadas para tudo o que tem a ver com a Natureza. Todos tememos que haja um valor natural que nos impeça tudo e mais alguma coisa.

Com um património natural ímpar na Europa, o País desperdiça, individual e coletivamente, o enorme valor deste capital natural. O Estado, acompanhado de uma ação ecologista muito limitada e ideologicamente amarrada a preconceitos, com grande carência de meios, não consegue promover uma Natureza viva e vivida. “Viva”, como um ecossistema são e equilibrado; “vivida”, porque usufruída. Isto é, qualquer coisa como um rio onde se possa nadar e pescar e uma floresta ou montanha onde se possa passear, caminhar, acampar ou viver. É por isto, e algo mais, que qualquer cidadão ou promotor de bem foge do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, como o diabo da cruz. Muito raramente saímos da prática do “proibir para não estragar”. Segundo a cultura vigente, a Natureza é para ser conservada de forma quase intocável, mantida quase num despovoamento total, ser vista ao longe ou num qualquer ecrã. É urgente inverter esta situação, a expressão “conservação” tem de ir muito além do proibido, tem de proteger, valorizar, diversificar, promover, etc.

Há uns anos, tive o privilégio de atravessar a pé grande parte da Escócia. Lá, o urbano e a Natureza confundem-se. O campo, a floresta, os rios e os lagos entram pelas cidades, vilas e aldeias. A harmonia é quase perfeita e chega a provocar inveja. Por tudo isto, é impossível a um escocês ignorar o meio natural; ele vive na Natureza, apesar de a biodiversidade ser miserável quando comparada com a nossa. Esta faz parte do seu modo de vida e qualquer pessoa, por muito distraída que seja, sente isso e vive-o.

O corpo nacional de “guardas-florestais”, que lá existe, promove um enorme conjunto de atividades na floresta, dirigidas a todos os públicos, que visam ensinar, viver, educar e valorizar o meio natural. Na verdade, uma das notas mais impressionantes desta experiência foi compreender como este simpático povo vive o campo. Tudo é pretexto para ir ao campo e usufruir do campo. Acresce o perfeito papel e a integração de cada parte, pública e privada, que se sente e percebe em cada situação. É tão simples e claro que fica fácil e é bom para todos, como não pode deixar de ser.

Logo no aeroporto, como todos os viajantes, fui explicitamente convidado a ler o Scotland’s Outdoors Responsibly, que se resume em três significativos e simples tópicos: é responsável pelos seus atos e ações; respeite as outras pessoas; cuidado com a Natureza. Mais não é preciso, a Natureza é viva e vivida e essa é a melhor garantia de conservação e valorização dos ecossistemas. Por cá é exatamente o contrário de tudo isto. Alguém me comentou um dia: “Porque cá há portugueses e não escoceses…”

Na verdade, a gestão que o nosso país faz do seu enorme património natural é estúpida porque a ninguém aproveita, tão-pouco a própria Natureza.  Em Portugal é proibido acampar no campo, só é legal acampar em parques de campismo que na generalidade são réplicas das cidades onde vivemos, com supermercados, restaurante, zonas ajardinadas, piscina, etc. É imaginável algo mais absurdo e caricato?

Tudo isto acontece no País que diz apostar fortemente no turismo, que tem o principal aeroporto no centro da capital e o do Algarve numa Reserva Natural. Somos o mesmo país onde é possível o abate de milhares de hectares de preciosas árvores para espalhar parques solares.

Educar e responsabilizar os portugueses pelos seus atos na Natureza é incontornável, proibir, porque sim, é atraso. Às vezes basta um pouco de bom senso.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Nos finais de 1988, farto das rasteiras dos barões do seu próprio partido, Vítor Constâncio bateu com a porta e demitiu-se de secretário-geral dos socialistas. Para memória futura, bradou: “Não tenho generais!” Referia-se o malogrado líder do PS à falta de nomes que aceitassem avançar, em Lisboa, para uma candidatura autárquica à capital, em 1989. O último a dar-lhe a nega fora António Guterres, que desejava tudo menos afundar-se numa guerra considerada perdida, hipotecando as suas hipóteses de, um dia (o mais cedo possível) ficar com o lugar de Constâncio. Nessa altura, o PS era a terceira força, na capital, atrás da AD – a câmara era liderada pelo centrista Nuno Krus Abecasis – e do fortíssimo PCP, representado, na vereação, por, entre outros “históricos”, o cabeça de fila Rui Godinho. Uma candidatura à capital era, pois, uma jogada de alto risco. E o único interessado, não pela perspetiva de vitória, mas pelos ganhos de notoriedade, era o (então) pouco credenciado filho do Presidente da República, João Soares. Mas, à época, Soares júnior, longe de ser considerado um “general”, não passava de um fogoso “tenente”. Acontece que a CML era crucial para a afirmação de uma nova liderança que não via outra forma de furar a pujante hegemonia da maioria absoluta cavaquista. Pouco depois, já em 1989, o sucessor de Constâncio, Jorge Sampaio, enfrentou o mesmo problema: falta de “generais”. Uma bela manhã, fazendo a barba, vendo-se ao espelho, encontrou o candidato ideal: “Naturalmente, sou eu próprio!” – palavras que repetiria na apresentação da candidatura. O resto foi o que sabemos.

Acontece que, embora os paralelos só muito dificilmente possam ser encontrados (a começar pela ausência de uma maioria absoluta intransponível…), ainda há quem os encontre. Num inesperado artigo, publicado no Público, esta terça-feira, 7, o ex-ministro da Cultura do último governo de António Costa, Pedro Adão e Silva, titula: “E se Pedro Nuno Santos concorrer a Lisboa?” No desenvolvimento do raciocínio, Adão e Silva nota que “a curtos nove meses das autárquicas, o caso de Lisboa permanece um mistério”, que Carlos Moedas “não tem um único projeto mobilizador” e vê contra si “a deterioração dos principais problemas da cidade” e que, apesar disso, “o PS continua a não apresentar um candidato”, custando a compreender “um impasse que diminui a capacidade de fazer oposição e limita a afirmação de um projeto alternativo”. O autor sustenta que, ao contrário do que acontecia em 1989, não faltam generais ao líder do PS e que este atraso apenas pode justificar-se pelo facto de o próprio Pedro Nuno estar a ponderar uma candidatura. Diz o antigo ministro de Costa: “Como aconteceu com Sampaio em 1989, se tivermos uma legislatura de quatro anos, caso Pedro Nuno Santos se candidatasse a Lisboa e vencesse, teria apenas dois anos até ser candidato a primeiro-ministro.” Sabemos o que aconteceu a Sampaio, em 1991: perdeu, com estrépito, as eleições legislativas, concedendo a Cavaco o reforço da sua maioria absoluta. Não é por aí, portanto. Na verdade, o que faz hesitar Pedro Nuno em aprovar um candidato é mesmo isso: a falta de generais. Ganhar as autárquicas, em geral, e, em particular, Lisboa, será crucial para a sua afirmação. Terá, pois, de acertar em cheio. Mas quem? Independentemente dos desenvolvimentos – Pedro Nuno desmentiu, imediatamente, qualquer intenção de se candidatar a Lisboa –, alguns dos nomes de que se fala, Alexandra Leitão, Mariana Vieira da Silva, outros, não são bem generais, talvez não passem de “majores”. E o único capaz de aspirar ao generalato, Duarte Cordeiro, impôs-se a si próprio uma travessia do deserto, sendo que pode deparar-se com o mesmo dilema de Guterres, em 1989: se perder em Lisboa, ficará hipotecada a sua ambição de ocupar, um dia, a cadeira que agora pertence a Pedro Nuno. O dilema do líder é excruciante: vai ele a Lisboa, perde e demite-se? Ganha e afirma a liderança (mas perde foco, como Sampaio, na função de líder da oposição)? Ou vai um outro que, a vencer, adquire – como é inevitável que aconteça em Lisboa – protagonismo suficiente para se constituir como uma alternativa interna? Partilhando com o Sampaio de 1989 a necessidade absoluta de reconquistar Lisboa, mas sem correr o risco de lançar uma criatura que venha a engolir o criador, resta a Pedro Nuno Santos considerar o desafio de Pedro Adão e Silva, mesmo que lhe pareça um conselho envenenado. Ou então, perdido por um, perdido por mil, desafiar o desafiante para se candidatar ele.

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Fosse eu muito otimista e estivesse completamente alheado do atual estado das coisas e diria que o cocktail de chico-espertice, ignorância, jogatana politiqueira e incompetência comunicacional que foi a atuação do Governo na nomeação falhada de Hélder Rosalino tinha servido para colocar no debate público a questão dos salários dos políticos e dos altos dirigentes da administração pública.

Sei, porém, que a discussão vai ficar pela politiquice e pela mesquinhez. O foco será apenas o pequeno ganho politiqueiro e, claro, o tema dos salários será olimpicamente ignorado. Diz que não dá votos. Continuem assim que cada vez menos tempo falta para nem termos sequer votações.

No mesmo sentido, não admira que o assunto não seja falado nem comece a ser resolvido: são os nossos políticos os executantes desta política que tem afastado bons profissionais de carreiras ligadas ao Estado.

Convenhamos, os populistas estão a fazer um excelente trabalho. O seu sucesso na corrosão das principais instituições democráticas é inegável. Mas houve quem lhes tenha irresponsável e criminosamente aberto o caminho.

Não foi o Ventura e as suas réplicas que conseguiram afastar os nossos melhores das tarefas de defesa do bem comum.

Um homem ou uma mulher que vai para ministro, secretário de Estado, presidente da câmara ou vereador não o faz apenas pelo salário. Há em muita gente o desejo de servir o próximo, de contribuir para uma comunidade que funcione melhor, que seja mais justa, que traga mais prosperidade a todos. Sabe que muito provavelmente ganharia bem mais na atividade privada e sem os problemas que a exposição pública traz. Mas há limites.

Não é lógico, não é defensável, não é sequer digno que um presidente da câmara de uma cidade como Lisboa ou Porto leve para casa cerca de 3 000 euros e ministros pouco mais do que isso.

Alguém com este tipo de responsabilidades é pago como um quadro médio de uma empresa. E acrescem a este salário indigno para as funções as incompatibilidades que não vão permitir-lhe trabalhar naquilo para que foi treinado e o epíteto de gatuno mal entre no ministério ou na câmara municipal.

É verdade que estes salários podem parecer elevados num país onde se ganha tão mal, mas é exatamente para que Portugal evolua que temos de pagar bem a quem dirige o País e a máquina do Estado. Não é degradando mais a classe política e a administração pública que vamos evoluir.

Pois claro, temos muitos boys das máquinas partidárias. Ah, pois, não falta gente em altos cargos políticos que não arranjaria emprego em mais lado nenhum. Claro, um primeiro-ministro só consegue um ministro à quarta ou quinta tentativa.

Lamento, não foi o Ventura que inventou isto nem que fez com que chegássemos a este ponto. Fomos nós como comunidade que fizemos a sementeira que agora ele está a colher. Fomos nós que aplaudimos os políticos que se armavam em muito sérios quando cortavam nos seus próprios salários e replicavam a conversa de “os políticos são todos uns ladrões”.

Também não foram os novos populistas que inventaram o discurso de que quem trabalha para o Estado é tudo um bando de preguiçosos que só lá estão para não deixar o País prosperar e atrasar quem quer trabalhar. Não foram eles que levaram à situação em que um diretor-geral de departamentos públicos essenciais ao funcionamento da comunidade ganhe 5 000 euros brutos. Não foram eles que fizeram com que os salários da esmagadora maioria dos funcionários da administração pública não sejam minimamente competitivos com os do setor privado.

Não foram eles que desprestigiaram as carreiras na função pública, que fizeram com que um jovem ambicioso no início de carreira queira ir para todo o lado menos trabalhar para o bem-comum.

Fomos nós que levámos a que quando um departamento público queira um bom advogado, um bom economista, um bom eletricista, tenha de o contratar fora do Estado, pagando muito mais porque não tem suficientes profissionais competentes.

Fomos nós que embarcámos na conversa dos funcionários públicos a mais sem que soubéssemos perguntar se de facto era verdade ou se havia a mais nuns lados e a menos noutros.

Não tenho a mínima dúvida de que a administração pública funciona mal e que a burocracia emperra o funcionamento das empresas e da própria economia. Mas de quem é a culpa? Não será também ou mesmo sobretudo de quem ajuda a que o Estado não tenha melhores profissionais? De quem não tem outro discurso político que não seja que é preciso cortar no Estado? De quem fez de facto tudo para que não funcionasse?

Estamos a pagar um preço altíssimo por não fazermos o suficiente por trazer os melhores, ou, pelo menos, mais gente competente, para cargos políticos e para a administração pública. Esta degradação foi péssima para o funcionamento eficiente da comunidade, mas está agora a ter uma consequência ainda pior: a contribuir para o discurso populista antidemocrático. E, repito, fomos nós que decisivamente ajudámos a criá-lo.

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Com uma pandemia e uma guerra na Europa pelo meio, parece que foi noutra vida, mas aconteceu há apenas dez anos, na manhã de 7 de janeiro de 2015. Armados com Kalashnikovs, dois homens, Chérif e Saïd Kouachi, com 32 e 34 anos, respetivamente, entraram a disparar pela redação do Charlie Hebdo adentro. Em menos de dois minutos, os irmãos Kouachi, com ligações à Al-Qaeda, mataram 12 pessoas, oito das quais eram cartoonistas do jornal. O ataque no semanário satírico francês, que não raras vezes criticava o Islão, traumatizou a cidade de Paris e chocou o Ocidente. Para França, seria o primeiro atentado terrorista de um ano tenebroso. Gerou-se uma onda solidária que, um pouco por todo o mundo, levou milhares a defender a liberdade e a proclamar: “Je suis Charlie.”

O atentado haverá de marcar para sempre a história do Charlie Hebdo, o qual não só foi capaz de preservar a sua independência como, desde então, se mantém de boa saúde financeira, um dado significativo na triste paisagem da imprensa europeia (a circulação aumentou cerca de 25% relativamente ao período anterior a 2015). Laurent Sourisseau, um cartoonista que assina Riss, foi um dos sobreviventes. Apesar da tragédia, conseguiram reconstruir a redação e continuar a trabalhar. Riss explicou, recentemente, à The Economist que estão sempre a pensar no atentado, embora não estejam sempre a falar nele. “Não podemos ficar esmagados por esta história”, argumentou. 

Riss continua a viver sob proteção policial e, hoje, assume a direção do jornal que, para marcar os dez anos do atentado, acaba de lançar uma edição de 32 páginas. O riso e o humor não desapareceram: na capa, os cartoonistas desenharam um leitor bem-disposto, sentado em cima de uma arma, a ler o Charlie Hebdo. Sustenta Riss, no editorial do número especial, que inclui novos cartoons sobre religião: “A sátira tem uma virtude que nos ajudou a superar estes anos trágicos: o otimismo. Se alguém quer rir, é porque quer viver. O riso, a ironia e a caricatura são manifestações de otimismo. Não importa o que aconteça, seja trágico ou feliz, a vontade de rir nunca vai desaparecer.”

Fundado em 1970, o Charlie Hebdo sempre foi um jornal controverso e, nos tempos que correm, sobretudo nos EUA, há muito quem veja nos seus cartoons de temática religiosa, essencialmente, uma forma de humilhação dos muçulmanos. No mesmo artigo da The Economist, Riss considera, no entanto, que o Charlie Hebdo não é “extraordinariamente provocador”. O problema, diz, é que “a margem de tolerância” está a diminuir. Como sublinhava esta semana o Le Figaro, ao mesmo tempo que uma sondagem (realizada pelo Ifop para a Fondation Jean-Jaurès) dá conta da adesão da população à liberdade de expressão (76%), uma parte relevante das camadas mais jovens afasta-se das perspetivas satíricas do Charlie Hebdo. “Estamos a fazer exatamente a mesma coisa que fazíamos antes, mas à nossa volta as pessoas estão muito mais tímidas”, defende Riss.

Por haver sinais de que, dez anos depois, o apoio ao espírito do Charlie Hebdo é mais débil e de que, hoje, se vivem tempos de maior intolerância nas sociedades ocidentais, faz sentido perguntar: até quando estamos dispostos a proclamar “je suis Charlie”? Por coincidência ou talvez não, no outro lado do Atlântico, o ano de 2025 começou com a notícia da demissão da cartoonista do Washington Post, Ann Telnaes, após ter-lhe sido recusado um desenho que caricaturava quatro milionários de tecnologia e de média – incluindo Jeff Bezos, fundador da Amazon e proprietário do Washington Post – ajoelhados aos pés de Donald Trump. “Nunca tive um cartoon assassinado por causa de quem ou do quê que escolhi para apontar a minha caneta. Até agora”, afirmou Telnaes, já premiada com um Pulitzer. “Je suis Charlie Hebdo” para sempre?

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Da primeira vez, em 2019, muita gente se riu. Parecia apenas mais uma das suas bizarrias. Agora, já não parece piada: Donald Trump voltou à carga e parece querer mesmo que os EUA comprem a Gronelândia, um território autónomo, com pouco mais de 50 mil habitantes, pertencente à Dinamarca. Não há grande originalidade na ideia – o primeiro a propô-la, em 1867, foi William Seward, à época secretário de Estado.

Esta não seria, aliás, a primeira vez que os EUA alargariam o seu território com dólares. Em 1803, o Presidente Thomas Jefferson adquiriu a Napoleão o que então se designava por Louisiana, um território que abarca hoje parte ou a totalidade de 15 estados no interior americano, num negócio de 15 milhões de dólares. Mesmo ajustando o valor à inflação (370 milhões de dólares), não deixa, aos olhos de hoje, de parecer uma pechincha, mas Jefferson não teve a vida facilitada, com vários opositores a criticarem o Presidente por gastar dinheiro que o país não tinha – foi preciso contrair empréstimos em bancos ingleses e holandeses –, sobretudo quando o território poderia ser capturado sem grande oposição, dado a guerra que estava para eclodir entre França e Inglaterra; Napoleão, que já planeava invadir a Grã-Bretanha, sabia desse risco, e daí a sua motivação em vender.

Sessenta e quatro anos depois, em 1867, Washington voltou a puxar da carteira para ampliar o território, comprando o Alasca à Rússia por sete milhões de dólares (130 milhões a valores atuais). Mais uma vez, pareceu um melhor negócio para os vendedores do que para os compradores: o Alasca era considerado um ermo sem préstimo, onde não viviam, além dos inuits, mais do que uns punhados de caçadores de peles russos e que seria impossível à Rússia defender, se Inglaterra (com a qual Moscovo se encontrava em conflito) decidisse invadi-lo – até que, em 1896, se descobriu ouro e, em 1957, petróleo. O Alasca é o maior estado americano, com mais do dobro da área do segundo, o Texas.

Tendo ou não em mente estes exemplos, Trump parece querer repetir a História, ao insistir repetidamente que os EUA deveriam adquirir a Gronelândia. “Para efeitos de segurança e liberdade nacionais em todo o mundo, os Estados Unidos da América consideram que a propriedade e o controlo da Gronelândia são uma necessidade absoluta”, garantiu, na sua rede social, a 22 de dezembro.

O controlo da Gronelândia significa duas coisas: poder e dinheiro.

Uma fortuna à espera do aquecimento

Diz-se que a História não se repete, mas rima. E a verdade é que há paralelismos curiosos entre a pré-proposta de Trump para comprar a Gronelândia e os anteriores negócios. O tamanho, por exemplo: a compra do Louisiana acrescentou 2,14 milhões de quilómetros quadrados aos EUA; a Gronelândia (considerada a maior ilha do mundo, quase quatro vezes maior do que a Península Ibérica) somaria 2,17 milhões de quilómetros quadrados ao país.

Fora esta coincidência no tamanho, a melhor comparação será com o Alasca. O estado americano era rico em ouro e continua a ser rico em petróleo e gás natural; a Gronelândia é rica em metais raros, o ouro do século XXI, e quase de certeza em petróleo e gás. Uma das diferenças é que, ao contrário da Rússia no século XIX, a Dinamarca e os gronelandeses sabem o que potencialmente se esconde no subsolo da região.

Degelo O aquecimento pode tornar apetecível explorar os recursos mineiros da Gronelândia

Há outra diferença de relevo: na Gronelândia, ainda é difícil e caro extrair tanto os metais como os hidrocarbonetos, escondidos sob camadas de gelo que, muitas vezes, têm centenas de metros de espessura.

Mas as alterações climáticas estão a tornar o impossível provável. Nas últimas três décadas, derreteu uma área de gelo com cerca de 30 mil quilómetros quadrados (equivalente a um terço de Portugal). A má notícia é que este gelo está a escorrer para o oceano e a fazer subir o nível médio das águas – sendo que, se todo o gelo gronelandês se derretesse, o mar subiria sete metros. A boa notícia, para quem pretende fazer dinheiro a explorar minérios, petróleo e gás, é que as riquezas no subsolo da grande ilha começam a ficar acessíveis.

Um caso que tem sido seguido de perto é o da empresa Greenland Minerals, que opera no Sudoeste da Gronelândia há 18 anos, na mina de Kvanefjeld, que se estima conter 100 milhões de toneladas de minérios. A montanha de Kuannersuit, onde se situa a mina, é apontada como um dos maiores depósitos do mundo de terras raras.

O maior acionista da Greenland Minerals é uma empresa chinesa, maioritariamente detida pelo Estado. E são precisamente as movimentações da China (que está a tentar controlar o mercado de terras raras e destronar os EUA como maior potência mundial) na Gronelândia que preocupam os americanos.

Há ainda a questão das rotas marítimas – um Ártico cada vez mais livre de gelo marinho torna apetecível fazer passar boa parte do comércio global pela região, poupando milhares de quilómetros de viagem. Quem controlar as rotas terá muito a ganhar.

Finalmente, há o argumento da defesa, que tem sido usado por Trump. Durante a II Guerra Mundial e a Guerra Fria, a Gronelândia foi considerada fundamental para a segurança dos EUA, que ali mantiveram forte presença militar. Ainda hoje, a estação de Thule, no Noroeste da ilha, é uma peça central do sistema americano de defesa antimíssil.

Quer queiram, quer não?

A Greenland Materials encontra-se em litígio judicial com o governo autonómico da Gronelândia, após a aprovação, em 2021, de legislação que interdita a mineração de urânio, o que levou a que não lhe tenha sido concedida uma licença de exploração (o urânio vem misturado com os outros minérios, pelo que, na prática, a nova lei impossibilita a exploração da mina). A empresa exige que lhe seja concedida a licença ou uma indemnização de 11,5 mil milhões de dólares (cerca de 5% do PIB português).

Também a exploração de hidrocarbonetos ficou dificultada em 2021, quando o governo suspendeu a exploração de petróleo em todo o território, por razões ambientais. “O futuro não reside no petróleo”, declarou na altura o executivo, em comunicado. “O futuro pertence às energias renováveis ​​e, nesse sentido, temos muito mais a ganhar.”

Claro que tudo pode mudar com um novo governo – e ninguém tem dúvidas de que, se Trump mandasse, as preocupações ambientais e climáticas não se interporiam no caminho do lucro.

Glaciar de Qooroq Nas últimas três décadas, derreteu, na Gronelândia, uma área de gelo com 30 mil quilómetros quadrados

Entretanto, a Gronelândia parece encaminhar-se para a independência, com o primeiro-ministro, Múte Egede, a dar a entender que pretende fazer um referendo, ao dizer que este é o momento para “dar o próximo passo” e acabar com as “algemas da era colonial”. À independência total poderia seguir-se um qualquer estatuto de subordinação aos EUA, que poderia passar pela sua incorporação com um estatuto especial (como Porto Rico). Egede, no entanto, não pretende que o território se torne independente para, no dia seguinte, se entregar nas mãos de Trump. “A Gronelândia é nossa. Não estamos à venda e nunca estaremos à venda”, disse.

A Dinamarca também não quer ouvir falar de tal possibilidade. Já em 2019, a primeira-ministra, Mette Frederiksen, havia apelidado a proposta de Trump de “absurda” (o que lhe valeu o epíteto de “nasty”, por parte do então Presidente, um termo que ele costuma aplicar a mulheres de quem não gosta e que, simpaticamente, podemos traduzir por “desagradável”).

Mas Trump, para quem a compra da Gronelândia não passa de um grande “negócio imobiliário” (palavras do próprio), não desiste. Ao anunciar que o filho, Donald Jr., iria visitar o território esta semana, deixou uma mensagem – ou aviso – ao povo gronelandês: “A Gronelândia é um lugar incrível e as pessoas beneficiarão enormemente se, e quando, se tornarem parte da nossa nação. Vamos protegê-la, e vamos apreciá-la, de um mundo exterior muito cruel. VAMOS FAZER A GRONELÂNDIA GRANDE DE NOVO!”

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1. “No Yogurt for the Dead“, de Tiago Rodrigues

Tiago Rodrigues, atualmente diretor do Festival d’Avignon, em França, será presença regular nos palcos portugueses em 2025. Em fevereiro, acontece a estreia nacional de No Yogurt for the Dead, um espetáculo mais pessoal (à semelhança de By Heart), inspirado nas últimas semanas de vida do seu pai, o jornalista Rogério Rodrigues. Passará primeiro pela Culturgest, em Lisboa, e depois pelo Theatro Circo, em Braga. Antes, nos dias 10 a 12 de janeiro, o encenador traz Hécuba, não Hécuba, ao Centro Cultural de Belém, uma peça que “entrelaça a história da viúva de Príamo (…) com a de uma atriz que, nos nossos dias, interpreta a Hécuba de Eurípides”. A aclamada Catarina e a Beleza de Matar Fascistas também regressa aos palcos portugueses, chegando a Penafiel (24-26 jan) e a Viseu (31 jan-1 fev). Culturgest, Lisboa > 19-23 fev > Theatro Circo, Braga > 27-28 fev

2. Teatro Nacional D. Maria II no Variedades e Bombarda

A Farsa de Inês Pereira, com encenação de Pedro Penim. Foto: Filipe Ferreira

Com as obras no Rossio ainda em curso, o Teatro Nacional D. Maria II marcará presença regular em Lisboa noutras salas da capital. No renovado Teatro Variedades estarão criações de, entre outros, Pedro Penim (A Farsa de Inês Pereira, reescrita pelo diretor do D. Maria a partir de Gil Vicente, em fevereiro), Patrícia Portela (Homens Hediondos, monólogo interpretado por Nuno Cardoso, a partir de David Foster Wallace, em maio) e Odete (As Mulheres que Celebram as Tesmofórias, a partir de Aristófanes, em junho). Já a nova Sala Estúdio Valentim de Barroso dos Jardins do Bombarda recebe mais de uma dezena de espetáculos ao longo do ano. Será aí que Inês Vaz e Pedro Baptista estreiam, em março, Auto das Anfitriãs, a partir de Luís de Camões, Raquel Castro apresenta em Lisboa As Castro, em maio, e que o Teatro Praga celebra 30 anos em julho. Teatro Variedades e Jardins do Bombarda, Lisboa > a partir de fev

3. “Skatepark“, de Mette Ingvartsen

Foto: Bea Borgers

Com um elenco formado por skaters profissionais e bailarinos que também são skaters (entre os 11 e os 36 anos), a coreógrafa dinamarquesa Mette Ingvartsen “explora a velocidade e a energia do movimento sobre rodas – uma memória física da sua própria juventude”. Skatepark parte do potencial coreográfico e dramático existente no espaço partilhado por uma comunidade, que desliza, salta, cai e volta a levantar-se, não desistindo de alcançar as suas proezas. A prática do skate é levada do espaço público para o palco, como uma forma de dança com combinações vertiginosas. Teatro Municipal Rivoli, Porto > 28 fev-1 mar > Culturgest, Lisboa > 7-8 mar

4. “Steal you for a moment“, de Francisco Camacho e Meg Stuart

Foto: Dajana Lother

A ligação entre Francisco Camacho e Meg Stuart vem de longe, do tempo das primeiras peças da aclamada coreógrafa norte-americana (como Disfigure Study, de 1991). Três décadas depois, voltam a reunir-se para um dueto, inspirado nas ruínas nurágicas da Sardenha, envoltas em mistério, que têm despertado a curiosidade de arqueólogos e viajantes. A ausência de registos exatos leva-os para uma paisagem fora de tempo, concebida pelo cenógrafo Gaëtan Rusquet, o designer de som Vincent Malstaf e o iluminador Frank Laubenheimer. Teatro Municipal Rivoli, Porto > 6-8 mar > Theatro Circo, Braga > 11-12 abr

5. “A Família Addams“, de Ricardo Neves-Neves

Ricardo Neves-Neves encena esta adaptação portuguesa do musical A Família Addams, baseado nas personagens criadas por Charles Addams. Um elenco de nove atores dará vida à excêntrica família e aos seus novos amigos, numa história recheada de humor, reviravoltas e muita música. A acompanhá-los estará também um ensemble de músicos e cantores. Teatro Maria Matos, Lisboa > a partir de 5 mar

6.”Pessoa – Since I Have Been Me“, de Robert Wilson

Foto: Lucie Jansch

A estreia foi em maio de 2024, em Itália. Em março, chega a Lisboa o espetáculo de Robert Wilson que parte dos heterónimos de Fernando Pessoa e capta os diferentes universos plasmados nas suas palavras. Falado em português, italiano, francês e inglês – o elenco é internacional e conta com Maria de Medeiros no papel do poeta –, presta homenagem à originalidade de Pessoa. Não faltará a forte componente visual, habitual nas criações do encenador norte-americano, a jogar com a multiplicidade das vidas do escritor português. Teatro São Luiz, Lisboa > 7-8 mar

7. “Hamlet“, de Nuno Cardoso

Antes de o Teatro Nacional São João fechar para obras (no final de maio), estreia-se uma nova produção. O diretor artístico, Nuno Cardoso, volta a encenar William Shakespeare com uma nova versão de Hamlet, história sobre o Príncipe da Dinamarca que “reflete sobre o homem e a sua circunstância” e que tanta literatura gerou ao longo dos tempos. Contará com o elenco residente da casa (Joana Carvalho, Lisa Reis, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho e Pedro Frias), a que se juntam outros atores. O espetáculo seguirá depois em digressão nacional. Teatro Nacional São João, Porto > 3-27 abr

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1. 31 Mulheres. Uma Exposição de Peggy Guggenheim, no MAC/CCB

Estas artistas ligadas ao surrealismo e à arte abstrata remetem para a exposição organizada pela célebre colecionadora na sua galeria nova-iorquina em 1943: um momento disruptivo, concebido com Marcel Duchamp, que apresentou apenas obras de artistas mulheres europeias e americanas – autonomizando-as, assim, da sombra dos homens que dominavam os movimentos pictóricos. E que é, agora, ressuscitado. MAC/CCB, Lisboa > 27 fev-15 jun 

2. Transe, no MAAT 

Primeira retrospetiva dedicada a Rui Moreira, terá patentes mais de 100 desenhos e pinturas de médio e grande formato no espaço da antiga Central Tejo. Curada por João Pinharanda, a mostra inclui desenho, fotografia e escultura, guiados pelos temas da espiritualidade e da magia, e pela recriação de mitologias celtas, africanas, eslavas, japonesas… Esta é a primeira vez que o artista (nascido em 1971) mostrará em ambiente museológico a sua obra, caracterizada pelo virtuosismo do traço, a atenção ao detalhe e a tensão entre ficção e realidade. MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa > fevereiro 

3. Jeff Wall, no MAAT 

Foto: DR

Ocupando todo o espaço expositivo do MAAT, o fotógrafo canadiano é a estrela da sua programação. Nome maior das artes visuais, o artista nascido em 1946 privilegia as fotografias de grande formato, com narrativas visuais enigmáticas encenadas em cenários quotidianos. Aqui, terá uma das mais abrangentes e extensas mostras do trabalho produzido nas últimas quatro décadas: 69 obras das 200 por si criadas, que exploram as linguagens estética e conceptual do cinema, da pintura e do teatro. MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa > abril 

4. Paula Rego e Adriana Varejão. Entre os Vossos Dentes, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian

Anjo (1998), de Paula Rego, e Parede com incisões a la Fontana (tríptico, 2022), de Adriana Varejão. Foto: DR

Destas artistas com linguagens pictóricas fortíssimas, mostram-se 80 obras dedicadas ao tema da violência. Refere a Fundação Gulbenkian que “o ponto de partida é a pintura A Primeira Missa no Brasil, de Paula Rego, uma obra realizada em 1993, raramente exibida”. A curadoria de Adriana Varejão, Helena de Freitas e Victor Gorgulho reinterpreta “as dinâmicas de poder de duas gerações, com especial incidência sobre a história das mulheres em geografias diferentes, abrindo um vasto arco temático de reflexão sobre o presente”. Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa > 11 abr-15 set 

5. Zanele Muholi, no Museu de Serralves

Foto: DR

Sob o mote Janelas para o Mundo, uma das apostas de Serralves é a grande exposição, criada em colaboração com a Tate Modern de Londres, dedicada à fotógrafa sul-africana. Definindo-se como “ativista visual”, Zanele Muholi traz esculturas e os seus autorretratos realizados num preto e branco implacável em que, com a ajuda de objetos quotidianos (pentes, escovas da loiça, arames…), reinventa os códigos do género e denuncia o eurocentrismo, o racismo, os desafios da comunidade LGBTQIA+.  Fundação de Serralves, Porto > abril 

6. Miriam Cahn, no MAAT 

2025 será pródigo em estreias internacionais em Portugal, como a da artista suíça que, na exposição curada por João Pinharanda e Sérgio Mah, revela obras recentes, centradas na pintura e no desenho. Herdeira dos movimentos feministas dos anos 1970 e 1980, Cahn tem uma produção fantasmática, colorida, povoada de corpos etéreos apenas na aparência. A sua obra questiona eventos traumáticos como a guerra no Golfo Pérsico, o 11 de Setembro ou a violência em torno do género, do desejo, do corpo – a beleza e a brutalidade da experiência humana. MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa > junho 

7. Maurizio Cattelan, no Museu de Serralves

Foto: DR

O artista italiano fez manchetes no ano passado com Comedian, a banana presa à parede com fita-cola que foi vendida em leilão por cerca de seis milhões de euros (e comida pelo seu comprador…). O diretor do Museu de Serralves, Philippe Vergne, definiu-a como “uma das peças mais importantes dos últimos anos”. Os visitantes poderão tirar as suas conclusões: a obra controversa de Cattelan vai estar exposta, com outras peças representativas da sua veia satírica, como La Nona Ora, representação realista do Papa João Paulo II atirado ao chão por um meteorito, ou Daddy, Daddy, um Pinóquio afogado… Fundação de Serralves, Porto > jun 2025 – jan 2026 

8. Anne Imhof, no Museu de Serralves

Nascida em 1978, vencedora do Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2017 com a performance Fausto, a artista alemã apresentará obras proeminentes e peças inéditas concebidas para Serralves. Anne Imhof começou por desenhar e compor música quando trabalhava como porteira de um bar, antes de entrar para Belas-Artes, e dos seus trabalhos emana essa qualidade visceral. Fundação de Serralves, Porto > outubro 

9. Carlos Bunga. Habitar a Contradição, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian    

Foto: DR

Partindo do desenho A Minha Primeira Casa Era Uma Mulher, de 1975, que representa a sua mãe, o artista português revelará, anuncia-se, uma das suas exposições mais complexas e pessoais. Na Nave do CAM, usando a sua técnica habitual de materiais efémeros e quotidianos, Carlos Bunga apresentará uma ampla instalação de cartão site-specific, que pretende evocar as formas orgânicas do mundo natural, juntando-lhe trabalhos anteriores, objetos pessoais, materiais de arquivo. Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa > 31 out-30 mar 

10. Filipa César, no Museu de Serralves 

Tardava a primeira grande antologia desta artista multidisciplinar, que tem produzido uma reflexão crítica sobre as representações do colonialismo e da ditadura, através de narrativas visuais que reinventam o conceito de arquivo histórico. Oportunidade para contemplar uma obra diluidora das fronteiras entre documentário, cinema, denúncia. Fundação de Serralves, Porto > out 2025 – abr 2026 

Novos museus 

É no renovado Palácio dos Condes da Ribeira Grande, localizado na Rua da Junqueira, em Lisboa, que inaugura, a 22 de março, o MACAM Hotel: isto é, o Museu de Arte Contemporânea Armando Martins fundido com um hotel de cinco estrelas. Iniciada em 1974, a coleção conta com mais de 600 obras, e inclui arte moderna portuguesa das vanguardas do século XX até 1980 (incluindo peças de Paula Rego, Vieira da Silva, Amadeo ou Almada) e arte contemporânea nacional e internacional criada desde 1980, de mais de 280 artistas (Olafur Eliasson, Vik Muniz, Marina Abramovic…). Há ainda uma ala contemporânea dedicada a exposições temporárias, neste museu híbrido dirigido pela curadora Adelaide Ginga, que explora novas relações com a arte.

Outro museu muito aguardado é o Pavilhão Azul – Coleção Julião Sarmento, que falhou a inauguração prevista a 4 de novembro passado devido a atrasos nas obras do edifício da Avenida da Índia, com projeto assinado por João Carrilho da Graça. O centro cultural assente na coleção privada iniciada em 1967 pelo artista plástico, desaparecido em 2021, disponibiliza 1 261 obras de Warhol, Duchamp, Beuys, Cindy Sherman, Nan Goldin, Batarda, Rui Chafes… e merece ser inaugurado sem mais demoras. 2025 é também a data prometida para a reabertura do Museu Nacional de Arqueologia, situado no Mosteiro dos Jerónimos, após a “requalificação integral” de €24,5 milhões, destinada a valorizar os vastos tesouros nacionais… até agora escondidos nas reservas. 

Palavras-chave:

1. Wanderer Songs/Cantares do Andarilho 

O título em inglês mostra a ambição internacional do projeto, que mistura músicos com experiências diversas em vários países. Na base estão as canções de José Afonso, especificamente as que ele cantou no histórico e derradeiro concerto de janeiro de 1983 no Coliseu dos Recreios. Pedro Afonso, filho do autor de Venham Mais Cinco, desafiou vários artistas para estas reinterpretações. O resultado final foi ganhando forma numa residência artística no Teatro Faialense, na Horta, Açores. Aí, Tiago Correia-Paulo (que assumiu a direção musical), PS Lucas, Lavoisier, Selma Uamusse, Nacho Vegas e, nos audiovisuais, Nástio Mosquito e Vic Pereiró honraram uma das grandes qualidades de José Afonso: a inovação e a busca livre de novos horizontes e soluções.  Casa da Música, Porto > 22 jan > Tivoli BBVA, Lisboa > 23 jan 

2. Franz Ferdinand 

O ano vai começar, para estes nossos velhos conhecidos escoceses, com álbum novo. The Human Fear, a lançar a 10 de janeiro, sucede a Always Ascending, de 2018 (ou seja, na longínqua era pré-pandemia). Alex Kapranos e companhia devem estar mais nervosos do que o habitual antes deste concerto na Aula Magna: é o primeiro da digressão europeia do novo álbum, que vai levá-los a mais 11 países antes de seguirem para América do Norte (onde a tournée termina a 15 de abril, em Toronto, Canadá). Em agosto estarão de regresso a Portugal para uma atuação em Paredes de Coura. Aula Magna, Lisboa > 14 fev 

3. Plutónio 

Foto: DR

Para muitos, ver Plutónio a esgotar duas noites na maior sala de espetáculos do País pode ser uma grande surpresa. Mas aí está ele, João Ricardo Azevedo Colaço, 39 anos, muitos deles passados no Bairro da Cruz Vermelha, em Alcabideche, luso-moçambicano mais conhecido como Plutónio. “Eu fui discriminado no País das Maravilhas/ Fama é uma bênção, mas também tem maldição/ Fiz muitos quilómetros, mas agora ‘tou a milhas/ Acelerei demais, mas não perdi a direção”, começa por cantar no disco duplo que lançou este ano, Carta de Alforria. Entre hip-hop, r’n’b e trap, tudo temperado com um balanço afro, Plutónio tornou-se um caso sério numa sonoridade que tem conquistado muito público em Portugal nos últimos anos. Estas noites serão de consagração e vistas como um merecido prémio pelo músico.  Meo Arena, Lisboa > 28 fev e 3 mar 

4. Godspeed You! Black Emperor 

Intensidade é o que se espera sempre de um concerto dos canadianos Godspeed You! Black Emperor, com momentos hipnotizantes, explosões controladas de ruído, longos temas em crescendo, fragmentos de melodias – aquilo, afinal, que distingue o género musical que eles ajudaram a impor, o pós-rock. Estes concertos vêm na sequência da edição, em outubro deste ano, do álbum No Title as of 13 February 2024 28,340 Dead – estranho título que faz uma referência direta ao número de palestinianos mortos em ataques de Israel entre 7 de outubro de 2023 e 13 de fevereiro de 2024.  Music Station, Lisboa > 1 mar > Casa da Música, Porto > 2 mar 

5. Joan As Police Woman 

Foto: DR

Mais uma digressão europeia que começa em Portugal. E, neste caso, num local pouco habitual nestes circuitos: o auditório do Museu do Oriente. É aí, e depois em Espinho, e talvez noutros palcos nacionais ainda por anunciar, que a inspirada escritora de canções americana Joan As Police Woman (nome artístico de Joan Wasser) apresentará os novos temas do álbum lançado este ano, Lemons, Limes and Orchids, e outros, mais antigos, de uma carreira que desde cedo encontrou em Portugal um público atento.  Museu do Oriente, Lisboa > 29 abr > Auditório de Espinho > 30 abr 

6. Pixies 

Foto: DR

Depois de muitas visitas aos palcos portugueses, desde os míticos concertos de 1991 nos Coliseus, já não se pode dizer que os Pixies se impõem por um efeito surpresa. Todos sabem ao que vão. E apesar de a banda americana andar em digressão com o novo álbum, The Night the Zombies Came, lançado em outubro passado, é certo que a festa na plateia vai acontecer sobretudo sempre que se ouvirem as canções mais antigas, como Where is My Mind?, Vamos ou Gouge Away.  Campo Pequeno, Lisboa > 10 mai 

7. King Gizzard and the Lizard Wizard 

A Europe Residency Tour 2025 dos australianos passa por Lisboa em três noites seguidas na mesma sala: o Coliseu dos Recreios. Os King Gizzard and the Lizard Wizard continuam a ter no seu ADN uma certa exuberância que os tornou uma banda especial e, muitas vezes, desconcertante. Não só conseguem editar discos a uma velocidade estonteante (desde 2010, lançaram 25, cinco dos quais em 2017 e outros cinco em 2022) como oferecem uma enorme panóplia de estilos musicais, normalmente na esfera do rock psicadélico, mas com muitas surpresas e desvios pelo caminho. Como não poderia deixar de ser, cada uma destas três noites terá uma setlist diferente. Coisa rara, senão inédita, na vetusta sala lisboeta. Coliseu dos Recreios, Lisboa > 18-20 mai 

8. Kylie Minogue 

Foto: EPA/Jalal Morchidi

Desde 2011 que a maior estrela pop australiana não fazia uma digressão tão longa e ambiciosa. E desde a sua estreia em palcos portugueses, em 2009, que não regressava a Portugal. Agora volta à mesma sala, a MEO Arena (então Pavilhão Atlântico), com a Tension Tour, baseada nos seus dois últimos e festivos discos: Tension (2023) e Tension II (2024). MEO Arena, Lisboa > 15 jul 

9. Beth Gibbons 

Beth Gibbons, a vocalista dos Portishead atua em Lisboa em julho para apresentar o seu primeiro álbum a solo, “Lives Outgrown”. Foto: DR

Lives Outgrown, a estreia em nome próprio e a solo de Beth Gibbons, está em praticamente todas as listas que têm sido publicadas dos melhores discos de 2024 (a revista americana Time considerou-o mesmo o melhor disco do ano). A inconfundível voz, grave e serena, da vocalista dos Portishead percorre aqui canções feitas com tempo, ao longo da última década, em que a cantora, que completa 60 anos já no próximo dia 4 de janeiro, reflete sobre a passagem dos dias, dos anos, as perdas e as aprendizagens possíveis. O mínimo que se pode esperar é uma noite de concerto intensa e bela no Coliseu. Coliseu dos Recreios, Lisboa > 16 jul 

À espera do verão 

Começam a desenhar-se os cartazes dos festivais. Alguns destaques 

10. Coala Festival  Hipódromo Manuel Possolo, 31 mai-1 jun Liniker, Djodje, Ney Matogrosso, Xande Canta Caetano 

11. Primavera Sound  Parque da Cidade, Porto, 12-15 jun A Garota Não, Anohni and the Johnsons, Beach House, Caribou, Charli xcx, Deftones, Floating Points, Fontaines D.C., Jamie xx, Kim Deal, Michael Kiwanuka, Parcels, Squid, TV On The Radio, Wet Legs 

12. Jardins do Marquês Jardins do Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras, 29-30 jun, 6 e 9 jul  Cat Power, Gisela João, José González, Mayra Andrade, Mario Biondi, Paralamas do Sucesso 

13. AGEAS Cool Jazz  Hipódromo Manuel Possolo, Cascais, 4, 12, 17, 23 jul  Benjamin Clementine, Seal, Gilsons, Slow J 

14. NOS Alive  Passeio Marítimo de Algés, 10-12 jul  Olivia Rodrigo, Parov Stelar, Girl in Red, St. Vincent, Finneas, Kings of Leon, Future Islands, Foster the People, Amyl and the Sniffers  

15. Meo marés vivas  Vila Nova de Gaia, 18-20 jul Scorpions, Thirty Seconds to Mars, Os Quatro e Meia com Miguel Araújo 

16. Vodafone Paredes de Coura Paredes de Coura, 13-16 ago  Franz Ferdinand, Sharon Van Etten & The Attachment Theory, Jersey, Ana Frango Elétrico, Fat Dog, Black, Country New Road, Bar Italia 

17. Vilar de Mouros  Vilar de Mouros, 21-23 ago Da Weasel 

Palavras-chave:

É aborrecido estar sempre a falar de Trump, mas não há como evitar. Ele quer a Gronelândia, território autónomo da Dinamarca, e, se necessário, ameaça enviar as forças armadas para invadir a ilha. Seria uma nova guerra, e esta teria algo de peculiar: uma disputa entre dois membros da NATO. Que festim para Putin, Xi e Kim.

Para termos uma ideia, a Gronelândia é 24 vezes maior do que Portugal – uma extensão imensa, situada entre o Ártico e o Atlântico – e tem apenas 56 mil habitantes. Possui um Parlamento, um Governo e um primeiro-ministro, além do representante do Reino da Dinamarca.

Com uma população tão reduzida, a maioria vive na capital, Nuuk, a sul, num ambiente que funciona quase como um pequeno bairro, mas gelado. Todos se conhecem, todos se cumprimentam e todos se governam. Para invadir, bastaria enviar um pelotão de marines.

No entanto, há uma questão que Trump não respondeu: por que raio quer a Gronelândia, que sempre esteve lá, no mesmo sítio? Invoca razões de segurança nacional. Mas, a ser verdade, bastaria pedir ao seu parceiro da Aliança Atlântica para alugar algum espaço – algo que não falta naquele território.

É disto que Trump se alimenta: crises, insegurança, ameaças e intimidação. Mas sempre contra os seus parceiros, nunca contra Moscovo, Pequim ou Pyongyang. Não há ninguém que lhe administre um pouco de senso naquela cabeça aloirada?

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

D ir-se-ia que o SIS (Serviço de Informações de Segurança), a atual secreta civil nacional, devia apresentar no seu logótipo a efígie de Pêro da Covilhã, muito provavelmente o espião mais destemido e profícuo que Portugal teve. “Poucos portugueses tiveram uma existência tão aventurosa como Pêro da Covilhã”, resume o jornalista e escritor Luís Almeida Martins, autor de 365 Dias com Histórias da História de Portugal e de História Não Oficial de Portugal (ambos com edição de A Esfera dos Livros), obras que servem aqui enquanto fontes. Chegaremos a uma longa viagem de missões secretas e perigosas de Pêro da Covilhã, do Magrebe e da Arábia ao Indostão, para terminar no interior de África.

A vida do rapaz que adotou como apelido o nome da cidade serrana de que era natural começou a mudar por volta de 1468, quando tinha uns 18 anos. Dono de uma desenvoltura que não passava despercebida aos olhares mais atentos, seria sucessivamente recrutado por um influente fidalgo andaluz, como espadachim, e pelo nosso rei D. Afonso V, para escudeiro. Não iria longe com este monarca: esteve a seu lado na invasão de Castela e na desastrosa Batalha de Toro, em 1476, ganha pelas tropas de Isabel e Fernando de Aragão, futuros Reis Católicos de Espanha. Caiu assim por terra a união ibérica que Afonso V ambicionava liderar, o que até o levou a casar-se com a sua sobrinha, D. Joana de Castela.

Pêro conseguiu identificar poderosos que conspiravam contra a coroa, como o duque de Viseu e o bispo de Évora

Com o rei D. João II, o sucessor de Afonso V, deu-se a grande reviravolta na vida de Pêro da Covilhã. “Mais lúcido e prático do que o pai”, nota aquele autor, o Príncipe Perfeito aproveitou os dotes deste homem de confiança para outros fins – espionagem e delicadas missões diplomáticas. Para começar, Pêro conseguiu identificar poderosos que conspiravam contra a coroa, como o duque de Viseu e o bispo de Évora. Também poliglota, seria depois incumbido de negociar tratados com dois reis berberes de Marrocos, no que foi bem-sucedido.

Já a caminho dos 40 anos, em 1487, receberia de D. João II a ordem para fazer a viagem que o celebrizaria. “No âmbito dos preparativos da descoberta do caminho marítimo para a Índia”, explica Luís Almeida Martins, o Príncipe Perfeito confiou-lhe a missão de “tentar alcançar o Indostão por terra e trazer informações úteis sobre o cobiçado país das especiarias”. Do mesmo passo, “informar-se-ia acerca do misterioso reino cristão do Preste João”, que se suspeitava situar-se na Etiópia, no Leste africano.

CATIVO DO “NÉGUS”?

Pêro partiu acompanhado de Afonso de Paiva, outro homem da confiança do rei, também fluente em árabe e por coincidência igualmente natural da Beira Baixa, no caso, de Castelo Branco. “Disfarçados de mercadores, seguiram por terra até Barcelona, onde embarcaram para o Egito, com escala em Nápoles e Rodes”, relata aquele autor. “Juntando-se a uma caravana, disfarçados de mercadores árabes, atravessaram a Arábia, passando por Medina e Meca – onde rezaram como muçulmanos –, e em Aden separaram-se, combinando encontro para daí a três anos à porta da cidadela do Cairo.”

Paiva fletiu então para a Etiópia e Pêro embarcou para a Índia, onde obteve informações que viriam a ser de grande utilidade para que, cerca de uma década depois, em 1498, Vasco da Gama e a sua frota fizessem a primeira viagem marítima entre a Europa e o subcontinente indostânico. De volta ao fio desta história: no local combinado para o reencontro, no Cairo, Pêro deparou-se, em vez de Paiva, com dois judeus portugueses, “que lhe contaram ter aquele morrido pouco antes, sem conseguir transmitir o que vira nas suas andanças”, narra Luís Almeida Martins.

Um dos judeus partiu então para Lisboa, com um relatório de Pêro dirigido ao rei, enquanto o outro o acompanhou de regresso à Índia, para arrecadar mais informações. Depois, talvez já cansado da terra indostânica, e “para colmatar a branca deixada por Paiva”, continua aquele autor, viajaria para a Etiópia, a fim de recolher notícias do Preste João. “Seria ali encontrado muito mais tarde, em 1521, já velho e rodeado de filharada, por D. Rodrigo de Lima”, que chefiava uma expedição em busca do misterioso reino cristão – o qual existia mesmo, mas tinha rito próprio e era liderado por um soberano africano a quem os súbditos chamavam “négus” (imperador).

Fontes coevas dizem que Pêro afirmou que aquele soberano nunca o autorizou a abandonar o território. Presume-se que tenha ali morrido por volta de 1530, com 80 anos, e, apesar dos arriscados serviços que prestou ao País, foi remetido a uma divisão secundária da História.

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