Um sistema democrático implica, no mínimo, eleições livres. Tal exige acesso a informação para que a decisão de voto seja consciente. No entanto, numa era em que toda a informação está na ponta dos nossos dedos, nunca as sociedades democráticas se sentiram tão ameaçadas pela desinformação, discursos de ódio e informação falsa. Mas como chegámos aqui?
Neil Postman cunhou o conceito de “ecologia dos media” (media ecology), que pretende referir-se ao meio tecnológico onde a cultura se desenvolve, e como esse meio tecnológico condiciona a forma como pensamos, nos sentimos ou nos comportamos.
A tecnologia tem tido um impacto profundo na forma como a informação circula e molda as sociedades. A tecnologia disponível em cada momento tornou-se, por isso, tão importante como a mensagem.
Em 1858, às eleições para senador do estado do Illinois, nos EUA, concorreram Abraham Lincoln e Stephen Douglas. Embora àquela data os senadores não fossem eleitos pelo voto popular, os debates atraíram a atenção do público em geral. Realizaram-se sete debates, aos quais assistiram em média mais de 10 mil pessoas e onde o tema fulcral era a escravatura. Cada debate tinha uma duração de três horas. Na primeira hora, um dos candidatos discursava. Seguia-se o oponente com 90 minutos para rebater e apresentar as suas ideias, e finalmente o candidato inicial voltava ao púlpito por mais meia hora. Os jornais imprimiam os discursos e a população discutia ao detalhe as posições de cada candidato. Os debates permitiram o reconhecimento público de Lincoln e foram determinantes para a sua designação como candidato a Presidente pelo Partido Republicano (à data o partido progressista) dois anos mais tarde. Comboios, estenógrafos e imprensa escrita permitiram esta primeira interação democrática em larga escala.
Um século depois (1960) iniciou-se a era do debate televisivo. No debate para as eleições para Presidente dos Estados Unidos da América, John F. Kennedy foi considerado o mais calmo e hábil. Os jornalistas comentavam como Richard Nixon transpirava e como era bonita e elegante Jackie Kennedy. A era da política como entretenimento tinha chegado. Reduziu-se o tempo de discussão dos temas e ganhou prevalência a imagem e a destreza na comunicação. Hoje, com as redes sociais exponenciou-se o entretenimento. Frases, olhares, trejeitos são transformados num meme ou num vídeo de 10 segundos, que, tornando-se viral, substitui uma proposta, uma ideia. Neste frenesim, ganham os extremos que, sem soluções, repetem slogans, que invadem os telemóveis, captam a nossa atenção e condicionam o que pensamos.Numa tentativa de assegurar transparência e evitar a manipulação, a Comissão Europeia, no âmbito do Regulamento dos Serviços Digitais (RSD), divulgou um guia de boas práticas para apoiar as autoridades, em cada Estado-membro, a assegurar que as redes sociais não são usadas para influenciar ou condicionar os eleitores.
Na Alemanha, previamente às eleições de janeiro, foram realizados testes para determinar a eficácia dos processos de moderação. No entanto, sem alterações estruturais ao algoritmo ‒ que para cada utilizador seleciona o conteúdo que lhe é mais apelativo ‒, é impossível as redes sociais assegurarem uma informação plural e equilibrada. E, de facto, nas eleições alemãs, foi nos jovens dos 18 aos 24, aqueles cuja principal fonte de informação são as redes sociais, que o voto nos partidos de extremistas (AFD e Die Linke) mais cresceu.
Neste sentido, o RSD fica ainda aquém de proteger efetivamente o processo eleitoral, pois ao apenas exigir a eliminação de informação falsa e discursos ilegais, e ao não impor a obrigação de assegurar igual exposição para posições diferentes para temas complexos, necessariamente permite que o algoritmo continue a perpetuar e reforçar junto do utilizador preconceitos e opiniões, sem espaço para reflexão. Urge que as instituições europeias expandam a regulamentação. No entretanto, cabe-nos estar atentos, procurar informação detalhada e sustentada (nomeadamente nos meios de comunicação credenciados, sites de entidades fidedignas, podcasts de especialistas) e sensibilizar os que nos rodeiam.
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