Os jornais diziam há dias, com espanto, que a Igreja, entenda-se igreja católica (ICAR), não foi convidada para a abertura do ano judicial, e sublinhavam que esta situação era inédita na “laicidade do Estado”.
O Público ainda teve a clarividência de avançar que a decisão tinha sido tomada por unanimidade pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pelo procurador-geral da República (PGR) e pela bastonária da Ordem dos Advogados (AO), sendo todos eles católicos, talvez para evidenciar que não se tratará de qualquer luta político-religiosa. Mas o Expresso preferiu ocultar esta informação. O título daquele semanário era: “Abertura do ano judicial pela primeira vez sem representantes da igreja católica”, o que sugere confusão onde não parece haver nenhuma.
Quando questionado, o STJ esclareceu que “não irão estar presentes, porque não foi convidada nenhuma entidade eclesiástica de qualquer religião”, e aproveitou para explicar os convites aos representantes das Forças Armadas devido ao facto de existirem juízes militares em funções naquele tribunal.
A ICAR disse não querer comentar, confirmando a ausência de qualquer convite, mas manifestou desconforto com a nova situação (o que se compreende) não deixando de dar uma “bicada”, pois declarou que tal situação vinha “ao contrário do que acontecia, de acordo com uma longa tradição”. Só que Portugal é um estado de direito e não um “estado de tradição”. A lei vigente retirou há muito aos organizadores de cerimónias oficiais a obrigatoriedade de convidar uma autoridade eclesiástica católica para se fazer representar nas mesmas, em linha com o espírito da constituição e os princípios do estado laico.
Por que razão há-de o bispo duma diocese de estar obrigatoriamente presente com lugar de destaque numa cerimónia civil? E porque não os outros líderes religiosos? Se a constituição portuguesa é tão clara em matéria de não discriminação religiosa, por que razão se haveria de persistir justamente numa discriminação tão evidente? Se a Lei de Liberdade Religiosa segue a mesma linha, por que motivo o Estado haveria de continuar a proclamar liberdade e a negar a sua prática pelas mais altas instâncias?
Desde quando é que a tradição tem valor legal? As próprias instituições religiosas mudam as suas tradições antigas todos os dias, incluindo a ICAR. Um estado de direito não se guia por uma tradição, longa ou não, mas pela legislação que o rege. E a legislação não obriga a tais convites.
Portanto, se os organizadores agiram estritamente dentro da lei, como seria de esperar, porquê o espanto? Também é verdade que a lei não impede que se façam tais convites protocolares, mas já não por imposição legal.
O estado laico é uma conquista democrática e sem ele não existe liberdade religiosa. Bem sei que a notícia é quando o homem morde o cão, mas a comunicação social não tem mais nada de importante a realçar na cerimónia de abertura do ano judicial senão o facto de o representante do patriarcado de Lisboa não ter sido convidado para uma cerimónia, quando não tinha que o ser?
Há notícias que dificilmente se entende porque o são, em especial quando as instituições cumprem escrupulosamente a lei. A não ser que se queira inventar uma questão religiosa onde ela não existe.
O facto de o estado ser laico não significa que a sociedade o seja, por que não é. Mas isto nada tem que ver com os extremismos do laicismo. A laicidade defende a neutralidade e a não confessionalidade do Estado, justamente para não introduzir distorções no campo religioso e não colocar em causa a liberdade religiosa.
Mas o laicismo é outra coisa, implica que o Estado assume uma ideologia hostil à religião. Ora, não é disso que se trata aqui, mas, pelo contrário, da afirmação da neutralidade do Estado face às religiões, como deve ser. Por isso é de saudar a decisão do STJ, da PGR e da OA na afirmação pública da laicidade do Estado e da liberdade religiosa, no respeito para com todo o campo religioso.
Que as outras entidades públicas lhes sigam os passos.
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