Em tempo natalício, permitam-me partilhar convosco um pequeno texto do meu último livro (“Emmanuel: Um Deus parecido connosco & outras reflexões”, Lisbon Press, 2024).
Se prestarmos atenção à história bíblica, temos muitos momentos em que Deus se relaciona com o ser humano de modo inesperado, como quando que se encontrava com os humanos enquanto “passeava no jardim pela viração do dia”, quando entregou as tábuas da lei a Moisés no Monte Sinai, quando interagiu com Abraão em Moriá, junto aos carvalhais de Manre e em diversos outros locais, ou quando Jacob lutou com o anjo.
Mas também quando o anjo Gabriel surge na anunciação a Maria, quando Pedro tem um arrebatamento de sentidos em Jope, de modo a entender que a mensagem do evangelho é universal, quando Paulo experimenta uma epifania surpreendente e é arrebatado até ao terceiro céu, coisa que nem ousa descrever, ou quando João vê Cristo glorificado no seu desterro na ilha de Patmos, que o encarrega de escrever as cartas às sete igrejas da atual Turquia (Ásia Menor).
O problema é que tendemos a esquecer estas gloriosas realidades espirituais e ficamo-nos quase sempre por um conceito pagão da divindade, longínqua e hipersensível às nossas falhas, disposta a irar-se e a castigar-nos ao primeiro deslize, e que impõe uma multidão de intermediários para se poder relacionar connosco, além de abundantes rituais religiosos e diferentes tipos de sacrifícios.
Sim, somos seres complexos. Sim, Deus é complexo. Ou melhor, a nossa complexidade intrínseca leva-nos a complexificar a simplicidade divina, e assim formamos um conceito dessa realidade última, a que chamamos Deus, demasiado distante e quase incomunicável, talvez pelo nosso complexo de pequenez face ao Eterno.
Mas esquecemo-nos de que o fundamental não é o modo como nos vemos a nós mesmos (apesar de nos podermos sempre colocar perante o espelho da palavra divina para a cumprir na nossa vida), mas sim como Deus nos vê e se deseja relacionar connosco.
O Deus que se faz nascer no ventre duma jovem mulher do povo, e que vem ao mundo num casebre, embrulhado em trapos e rodeado de animais, não pode ser assim tão distante, pois tanto atraiu simples pastores de gado das cercanias de Jerusalém como ricos sábios do Oriente. O filho dum carpinteiro da desprezada Galileia das nações não podia ser assim tão inatingível. Aquele que nasce face ao testemunho cantado dos anjos nos céus de Belém, sob a proclamação de “Paz na terra, boa vontade para com os homens,” não pode ser assim tão despojado de empatia ou proximidade com esses mesmos seres humanos.
Além de tudo o mais, um Deus que se dispõe a enviar o seu Filho ao mundo, despojando-se da sua glória, não sendo indiferente ao percurso da humanidade mergulhada nas trevas não pode ser nunca considerado um Deus distante, insensível ao sofrimento dos homens. Nem sequer colhe a analogia do relojoeiro à maneira do argumento teleológico de Paley para a criação do universo por uma inteligência superior, porque Deus não criou o universo e deu-lhe corda virando as costas logo a seguir. Não. Ele é o Emmanuel, o Deus entre nós.
De facto, a grande pedra de tropeço que impede muitos de compreenderem o Deus revelado em Jesus de Nazaré é justamente a sua tremenda humanidade mas também o modo como a viveu, que vai desde a forma como nasceu e surgiu no palco da história, até à maneira como morreu. Esse é o escândalo da revelação divina.
Como alguém disse, as nossas ideias de Deus – diria mesmo, preconceitos – dizem muito mais sobre nós do que sobre Ele.
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