Em tempos celebratórios será cada vez mais difícil falar sobre o maior poeta português de todos os tempos sem cair em lugares comuns. Apenas os estudiosos da vida e obra daquela figura que se confunde com o país poderão trazer nova luz sobre a matéria, em resultado de aturadas investigações de muitos anos.
Acresce que a aura de mistério que rodeia o poeta do século XVI adensa ainda mais a incerteza sobre aspectos importantes da sua vida. Por exemplo, hoje questiona-se a estória do naufrágio, da gruta de Macau e do salvamento da sua obra-prima, e nem sequer sabemos em que mês e dia do longínquo ano de 1524 terá nascido em Lisboa. De todo o modo, o que nos interessa aqui é abordar a espiritualidade camoniana, em especial o seu conceito de Deus e a relação com a Transcendência.
O poeta revela na sua obra, desde logo, desenvolvidos conhecimentos bíblicos. É o caso do longo poema “Babel e Sião”, onde reproduz as dores dos cativos na Babilónia, a partir do Salmo 137, parafraseando o autor quando escreve “Como hei-de cantar o canto / Que só se deve ao Senhor?”, quando o salmista escrevia “Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?” (versículo 4), mas onde também associa a ideia da luz a Deus: “Que os olhos e a luz que ateia / O fogo que cá sujeita, / – Não do sol mas da candeia – / É sombra daquela ideia / Que em Deus está mais perfeita.”
No soneto dedicado a Jacob que serviu Labão mais sete anos para conseguir receber como sua mulher a filha Raquel (e não Lia), termina assim: “Começa por servir outros sete anos, / Dizendo: – Mais servira, se não fora / Pera tão longo amor tão curta a vida!” E no soneto que escreve com a alma enlutada “Alma minha gentil, que te partiste”, termina com este derradeiro terceto: “Roga a Deus, que teus anos encurtou, / Que tão cedo de cá me leve a ver-te, / Quão cedo de meus olhos te levou.”
De resto, o seu discurso poético está recheado de significâncias religiosas, como a expressão “mágoa do pecado”, “almas condenadas”, ou os versos “Os pensamentos declina / Àquela carne divina / Que na Cruz esteve já;” embora também use e abuse do termo “Fortuna”, querendo significar sorte ou destino, uma tendência típica e identificável da alma portuguesa.
Micheli Maria Migueis defende que, apesar de o autor ter sofrido censura eclesiástica, as marcas de religiosidade estão espalhadas pela sua obra-prima, do Canto I ao X, assim como noutros textos da sua obra, incluindo inúmeras referências bíblicas, o que permite pensar que Camões tinha consciência e convicções cristãs. E acrescenta: “Em “Os Lusíadas”, enquanto o maravilhoso pagão está no plano da ficção, o maravilhoso cristão está no plano das convicções religiosas do poeta. O maravilhoso cristão é expressão da religiosidade do poeta. Esta religiosidade revela-se através de elementos da Doutrina Cristã Católica, de diversas referências bíblicas e de outros elementos de catolicidade, como os mitos católicos. Camões é um típico homem renascentista, que adotou em sua obra as características da estética classicista, mas sem abandonar suas convicções religiosas cristãs católicas, que marcaram de modo significativo sua obra.”
De facto, ninguém pode ignorar a influência dos clássicos na literatura camoniana, que o levaram a citar os deuses greco-romanos em “Os Lusíadas” e que tanto incomodaram os frades censores, ou a defesa duma relação amorosa inter-racial no poema “Endechas a bárbara escrava” e dum amor romântico sem fronteiras, assim como os famosos mitos do Adamastor, do velho de Restelo ou de Inês de Castro, além da epopeia nacional a que deu voz.
Não resisto a citar um trecho do texto delicioso de Francisco Malva, no Ponto SJ: “Com Camões aprendi a ler de verdade. Mas aprendi também a ser português. A navegar ondas altas num barco pequeno e a desafiar ventos e marés à procura de um mundo novo, não para possuir, mas para abrir horizontes. A quebrar com o casco as ondas de preconceito e a descobrir a beleza em cada um, para ser feito do mundo. A morrer pelas ideias e pelas pessoas, pelo nós e não pelo eu. A querer dar sentido ao trabalho e ao esforço, em prol de algo maior. A olhar a humanidade com esperança.”
Camões é tão estruturante na cultura portuguesa, que além de ter inspirado um dia nacional, ainda se presta a abordagens tão diversas como a divertida rábula humorística de Herman José (“Camões, poeta zarolho”), mas também os mais elaborados estudos académicos sobre a sua vida e obra, em Portugal e no estrangeiro.
A verdade é que ele, só com um olho, via mais longe do que muitos com os dois.
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