A política é a atividade nobre que trata dos assuntos da polis (cidade). Na Grécia antiga os homens livres juntavam-se na Ágora para decidir sobre a coisa pública, e quem não se disponibilizava para isso era muito mal visto.
Quando confrontado com o assunto, Jesus ensinou abertamente que os discípulos vivem em dois reinos distintos, o de César (temporal) e o de Deus (espiritual). Lucas refere-o: “É-nos lícito dar tributo a César ou não? E, entendendo ele a sua astúcia, disse-lhes: Por que me tentais? Mostrai-me uma moeda. De quem tem a imagem e a inscrição? E, respondendo eles, disseram: De César. Disse-lhes então: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (20:22-25).
Quando lhe perguntaram se era lícito pagar impostos a Roma, na realidade estão a perguntar se Jesus reconhecia a soberania de Roma sobre Israel. Pagar impostos ao Estado é reconhecer a autoridade do Estado. Ora, o voto é o mesmo. Há grupos religiosos abusivos que não permitem aos fiéis o voto, seguindo uma espécie de cartilha anarquista.
Se nos limitamos apenas ao temporal, tornamo-nos carnais e incrédulos. Se nos limitamos apenas ao espiritual, tornamo-nos fanáticos e alienados. O justo equilíbrio está na capacidade de estarmos em ambos, em simultâneo.
Então o cristão deve votar ou não? Claro que sim. É um direito e também um dever cívico. Quem não vota não tem voz ativa para criticar os negócios da coisa pública. Depois não se queixe.
Como deve o cristão orientar o seu voto? Deve pensar de modo a fazê-lo de forma responsável e de acordo com os princípios da sua fé, sabendo que não há nenhum partido cristão que represente a sua fé, e ainda bem… Dificilmente algum cristão se reverá em todo o programa, ideias e ideologia de qualquer partido, por isso vai votar no que lhe parecer melhor.
Não devemos ter uma atitude egoísta e pensar apenas em nós, mas na população em geral e especialmente nos mais fracos e desprotegidos. O exemplo do cristão é Jesus Cristo. Ele falaria alguma vez contra alguma etnia específica? Falou alguma vez contra os imigrantes? Veja-se que a primeira conversão à fé na Europa foi de uma imigrante, Lídia, a vendedora de púrpura. Ele falou contra as pessoas de religião diferente? Ou contra os gentios? Não esteve quase sempre junto dos mais pobres, vulneráveis e marginalizados, incluindo crianças, mulheres, doentes e portadores de deficiência?
Não devemos embarcar em promessas mirabolantes, porque são vãs e enganadoras. Evitemos até ser incoerentes, mesmo em matéria de defesa da vida. Alguns são contra a lei que permite o aborto (que até baixa a mortalidade da mulher); mas são a favor da pena de morte, da guerra por interesses económicos e políticos, ou de deixar morrer um doente à porta dum hospital porque não tem dinheiro para pagar…
Não basta dizer o que está mal. É preciso dizer como se faria melhor e se o orçamento aguenta essas medidas. Não basta prometer a Lua…
O que deve o cristão esperar? Deve exigir muito enquanto cidadão e esperar pouco enquanto cristão, pois a política, apesar de ser uma actividade nobre, está muito associada à tentação: “E, entendendo ele a sua astúcia, disse-lhes: Por que me tentais?” (v.23). A política está sempre associada à tentação, neste caso, a tentação do poder. Cuidado com a fé cega num político: isso é idolatria!
O cristão deve exercer a cidadania não caindo na alienação. A cidadania está na tradição cristã daqueles que tanto influenciaram a sociedade no sentido do Bem: na abolição da escravatura (William Wilberforce), na criação dos primeiros hospitais, na criação da Cruz Vermelha, na promoção da alfabetização e da educação universal (Lutero), na criação da enfermagem (Florence Nightingale), na criação da Didáctica (Comenius), na criação das universidades, na ciência, na liberdade de consciência, na invenção dos sindicatos em tempos de Revolução Industrial (metodistas ingleses), no liberalismo económico que era um capitalismo de rosto humano (Calvino), nas artes, na literatura, na arquitectura, etc, etc, etc.
Nestas eleições, devemos votar (nem que seja em branco, em último caso). Votar, sabendo que não há partidos cristãos. Votar, pensando não apenas no nosso interesse particular mas nos mais fracos e desprotegidos. Votar, não embarcando em promessas mirabolantes, e evitando ser incoerentes. O voto de protesto não serve para nada.
E por favor não levem a sério qualquer líder espiritual que venha apelar ao voto dos “crentes” num partido específico. Só pode ser oportunismo.
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