A verdadeira alma do povo russo é interpretada por outras figuras, em especial nas artes e na cultura, reconhecidas e admiradas em todo o mundo. É o caso de Leon Tolstoi (1828-1910), autor de “Guerra e Paz”, ou “Anna Karenina”, e que inspirou correntes filosóficas através da crítica ao patriotismo, às desigualdades sociais e à Igreja. A sua ideologia de não-resistência ao mal pela violência influenciou até mesmo Gandhi a desenvolver a doutrina da não-violência.
Mas também o poeta, dramaturgo e escritor do séc. XIX, Alexandre Pushkin, que deu o nome ao instituto de língua e cultura russa mais conhecido, o Instituto Pushkin. Ou Fiódor Dostoievski, escritor, jornalista e filósofo, que integra a época dourada da literatura russa. O autor de “Crime e Castigo” (1866), “O Idiota” (1869) e “Os irmãos Karamazov” (1880) foi contemporâneo de Nikolai Gogol e Tolstoi. Ou mesmo a Condessa de Ségur, nome artístico de Sophie Rostopchine, conhecida por escrever clássicos da literatura infanto-juvenil em francês. Com origem numa família nobre casou com um embaixador francês.
E não nos esqueçamos de Piotr Tchaikovsky, compositor de “O Lago dos Cisnes” e “O Quebra-Nozes”, as maiores obras-primas do ballet clássico, de Olga Khokhlova, a influente bailarina que casou com Pablo Picasso, ou de Mstisláv Rostropóvitch, o maior violoncelista do século XX, aluno de Shostakovich e Prokofiev, e forçado ao exílio em 1970 por defender Alexander Solzhenitsyn. Tal como o compositor, maestro e pianista Igor Stravinsky, conhecido por obras notáveis como “O Pássaro de Fogo”, “Petrushk”a ou “O Rito da Primavera”.
Consideremos ainda Andrei Sakharov, físico nuclear envolvido no desenvolvimento da primeira bomba de hidrogénio e que recebeu o Nobel da Paz em 1975 devido à luta pela defesa dos direitos humanos na URSS. O cientista inspirou a União Europeia a criar o Prémio Sakharov em 1988, atribuído desde então a organizações que se destacam na defesa dos direitos humanos. Contemos ainda com Mikhail Gorbatchov, o último presidente da URSS, que acabou com a Guerra Fria.
Esta pequena amostra revela como é a alma do povo russo. A literatura esboçou a expressão “alma russa” (Русская душа) para se referir à espiritualidade do povo, ou melhor, a uma personalidade profunda e forte, constantemente ligada ao sofrimento, à tragédia e à resignação. Gogol, Tolstoi e Dostoievski usaram-na nos seus escritos. Segundo Dostoievski, que se inspirou no sofrimento de Cristo, sua humildade e entrega até à morte pela humanidade, a necessidade espiritual básica do povo russo é “o sofrimento, onipresente e insaciável, em todo o lugar e em tudo.” Esta é a perspectiva filosófica como os russos entendem a sua identidade colectiva, do ponto de vista religioso e simbólico e que também inclui elementos como a força e a compaixão.
Daí Maiakovski ter escrito: “Não é difícil morrer nesta vida. Viver é muito mais difícil.” Talvez por isso o povo russo se tenha sempre sujeitado à ditadura, primeiros dos czares, depois a soviética e agora a putinista. Mas também consolidou a filosofia da alma russa em momentos de ruptura como a resistência a Napoleão na Campanha da Rússia, a Revolução Russa e a luta conta o nazismo.
Segundo alguns observadores Aleksandr Dugin, o guru de Putin, dá ideia de “comandar tudo na Rússia”. Mas isso parece que não lhe chega. Em entrevista ao Expresso ele apresenta-se como estando a “servir a identidade, espírito e alma do meu povo.” Mas se assim fosse a alma russa teria a marca dos cultos satânicos e do nazismo, actividades em que Dugin se envolveu há mais de quarenta anos. Dugin consagra uma devoção idealista à Rússia czarista e estalinista, enquanto despreza os valores da democracia e dos direitos humanos, considerando-os como marcas exclusivas do Ocidente, enquanto defende pontos de vista fascistas e de extrema-direita.
Em 2007 dizia que ninguém considerava existir alternativa política a Putin, a não ser pessoas mentalmente doentes e a necessitar de internamento psiquiátrico: “Putin está em toda parte, Putin é tudo, Putin é absoluto e Putin é indispensável.” Como se não bastasse ele integra o “partido da guerra”, defendeu a anexação da Crimeia e a invasão da Ucrânia afirmando que os russos só devem parar em Kiev.
A verdade é que se Rasputin ocupa o rodapé da história pela influência maléfica que teve sobre o czar Nicolau II, sua família e indirectamente sobre a governação imperial e o povo russo, Dugin (apesar da barba mimética em relação a Rasputin) nem a isso terá direito apesar de se autocentrar e considerar de forma tão elevada. Este doutrinário do ocultismo arvorado em guru de Putin nunca será uma estrela, mas antes uma espécie de cometa que passa nos céus dos Urais de modo fortuito e fugaz para não mais alguém se lembrar dele. Afinal, a alma russa tem donos legítimos mas perdeu-se porque anda a ser vendida ao diabo.
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