Pus o despertador para as sete da manhã. No dia em que podia ter ficado a dormir até mais tarde, levantei-me cedo para cumprir uma promessa e montar a árvore de Natal com os meus filhos antes de ir trabalhar e depois de na véspera ter voltado a chegar demasiado tarde do trabalho. Nunca gostei de acordar cedo. Mas basta-me pensar que este pode ser um dos últimos Natais em que os meus filhos acreditam no Pai Natal para saltar da cama num pulo. Quantos Natais tem uma infância? Nove? Talvez dez no máximo, se se tiver sorte. Eu, que sou ateia e nunca gostei de ser enganada, tenho um fraquinho especial pela época natalícia. Aquela coisa pirosa que se usa nos anúncios e a que se chama “magia do Natal” é para mim uma cápsula do tempo, um regresso a uma época em que fazia noitadas com a minha mãe e a minha avó a tender a massa das bolas e a fritar rabanadas, em que aguardava com ansiedade pela meia-noite para poder encher a sala de papéis coloridos rasgados enquanto recebia os brinquedos com que tinha andado a sonhar o ano inteiro.
Levei sempre tão a sério esta coisa do Natal que me lembro de fingir que acreditava no Pai Natal só para não estragar o ritual, que incluía o momento em que alguns dos adultos desapareciam misteriosamente para a sala de visitas até se ouvirem uns sinos que nos diziam que já podíamos sair da sala de jantar para encontrar os presentes.
Agora, o Natal é cada vez mais uma época de fantasmas. Um momento em que reproduzo gestos e rituais para manter vivos os que me faltam. Mas é também a altura em que regresso à infância, construindo a dos meus filhos. Há poucas tarefas mais importantes e complicadas do que construir uma infância. Sabemos que ela nunca será perfeita. É demasiado frágil para que não se parta um bocado quando a manuseamos. Mas se o fizermos com cuidado e tivermos sorte, ela ganha uma tonalidade dourada, que é um tesouro que nos fica para a vida, capaz de encher de luz os momentos mais sombrios em que toda a gente inevitavelmente tropeça.
É capaz de ser por tudo isto que embirro tanto com quem atira, com altivez e desdém, um “ainda acreditas no Pai Natal?”, quando a intenção é esmagar a suposta inocência do interlocutor. O cinismo é uma coisa triste. Não tenho outra maneira de o dizer. É uma desistência. É um sentimento que parece que paira, cheio de superioridade, mas só pretende colar-nos ao chão. É o sentimento de quem se declara vencido pela vida, encurralado, sem possibilidades.
“É o que é”, dizem-nos, com os ombros encolhidos e as mãos nos bolsos. E apetece-me responder-lhes: “Não. Não é o que é. É o que fizermos com que seja.” Vão dizer-me que sou ingénua. E eu quero lá saber. Respondo-lhes que sou exigente, que me recuso a deixar-me atropelar pela vida, que vou resistir como posso e fazer o meu caminho.
Quando alguém diz, cheio de ironia, que um sonhador é “alguém que ainda acredita no Pai Natal” quer reduzi-lo à ideia de que espera por presentes caídos de uma chaminé. Mas não é isso que faz quem sonha. Quem ousa imaginar que o mundo pode ser mais do que é está já a construir alguma coisa que não existia antes. Essa coisa pode começar por se chamar esperança. E, se tudo correr bem, essa esperança há de se transformar no combustível que nos faz arregaçar as mangas e começar a lutar pelo que queremos.
Enquanto eu fico na cama, tentando somar mais uns minutos de descanso a uma noite de sono curta, os meus filhos enchem a mesa da sala de papéis coloridos, fita-cola, lápis, canetas e tesouras, e começam a escrever cartas ao Pai Natal. É um trabalho que lhes ocupa várias manhãs de fim de semana, porque sabem que o trenó é pequeno e só cabem no máximo três brinquedos para cada um. Por isso, às vezes mudam de ideias e refazem a carta, alterando os pedidos. E enquanto o fazem, perguntando várias vezes como se escreve isto ou aquilo, concentrados numa das missões mais importantes do ano, estão a sonhar. Não há tarefa mais importante do que essa. E eu só tenho pena dos que não conseguem executá-la.
Tenho pena dos cínicos, que são uns medrosos. Tenho pena dos realistas, que são uns desistentes. Tenho pena dos pragmáticos, que perderam a imaginação. Tenho pena dos sensatos, que perderam o prazer. Tenho pena dos calculistas, que se desencantaram com tudo.
Há quem ande angustiado com o fim do mundo. Há quem ande angustiado com o fim do mês. Estou mais preocupada com os segundos. Mas tenho a dizer aos primeiros que a vida não é uma coisa que nos passa por cima e que o mundo está cheio de coisas que um dia foram impossíveis.
Quando alguém nos diz que alguma coisa é inevitável, o mais certo é que esteja só a tentar convencer-nos a não começar uma luta que ponha em causa o seu privilégio. Quando alguém nos diz que nem vale a pena tentar mudar, o mais certo é que seja alguém que está com medo de que a mudança o faça perder alguma coisa. Quando alguém nos diz que “sempre foi assim” ou que “a natureza humana” não permite que o mundo seja diferente, é possível que esteja a tentar dissuadir-nos de tentar alguma coisa que teme ou que não saiba nada de História e desconheça as vezes que a Humanidade se fez e se refez.
Escrever uma carta ao Pai Natal é mais do que pedir alguma coisa e esperar que ela nos chegue. É ter a capacidade de imaginar o que ainda não existe. É viver com magia e entusiasmo. É ver para lá do que pode ser visto. E é, às vezes, lidar com frustração de não encontrar no sapatinho tudo aquilo que se pediu.
Em breve os meus filhos deixarão de se levantar de madrugada para compor cartas ao Pai Natal. Espero que estes anos em que o fizeram os deixem com a semente do sonho, da esperança e da imaginação. Porque essas são as dádivas mais poderosas e transformadoras que alguém pode receber.