“Nós não somos iguais e nunca seremos”. Ouvi a frase da boca do Chef Nuno Diniz, numa entrevista a Joana Barrios. Diniz di-la com firmeza a propósito do episódio em que um aluno de cozinha ousou tratá-lo por Nuno em vez de “Chef”. O tom altivo, áspero, seguro, que usa para afirmar a impossibilidade de ultrapassar a diferença fez-me pensar. Nos últimos 50 anos, vivemos numa democracia baseada numa ideia de igualdade formal perante a lei, que até agora ninguém parecia disposto a pôr em causa de maneira explícita, mesmo que as diferenças materiais tenham sido sempre tão grandes, que esta “igualdade” não passou nunca de uma abstração, que serve algumas boas consciências.
Mas por que me arrepiou tanto, então, a frase de Nuno Diniz, quando sei há muito que a igualdade é mais dita que real e o fosso entre os que estão por cima e os que ficaram por baixo não para de aumentar? Talvez porque Diniz diz de peito feito e voz límpida o que ao longo da minha vida ouvi sempre (e foram muitas vezes) em surdina.
Demos, então, outra vez a voz ao Chef para perceber de onde vem e como entende a diferença que lhe parece natural, incontestada e inultrapassável. “Eu pertenço a um meio social que já não se usa muito. (…) De cada vez que uma filha se casava, ia para a lua de mel logo com a criada. Portanto, havia a filha de uma das criadas da minha avó, que era despachada com a menina que casava. Isto quer dizer que eu até ter 22 ou 23 anos tive uma criada em casa, que era a Celeste. Para as pessoas com complexos, que me estejam a ouvir, ‘criada’ não é um termo depreciativo, o nome ‘criada’ é porque era criada connosco. E, portanto, era uma pessoa da família, comia connosco à mesa”, explica-nos Nuno Diniz.
A candura com que Diniz fala de uma pessoa que é dada a outra como um objeto e impossibilitada de qualquer arbítrio sobre si mesma mostra uma naturalização da desigualdade que parece incompreensível para alguém que acredite num sistema democrático. Há aqui uma ordem natural que confere direitos e deveres à nascença: há as que nascem ‘criadas’ e os que se dispõem a criá-las e até as deixam comer à mesa.
Nuno Diniz só se engana quando diz pertencer “a um meio social que já não se usa muito”. Entende-se-lhe a nostalgia nas palavras, perante um tempo em que não seria sequer preciso explicar o que lhe parece óbvio às “pessoas com complexos”.
Mas a verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.
Agarrados à ideia de que se se esforçarem muito, conseguirão ter sucesso, os de baixo já não se vêm como as “criadas” que são dadas às filhas casadoiras. Mas os de cima ficam libertos para se assumirem como os vencedores naturais, mesmo que as condições de partida lhes tenham dado uma vantagem praticamente insuperável.
É neste contexto que a ostentação do luxo passou a ser uma espécie de pornografia social consumida em larga escala. O luxo é um objeto de desejo para quem nunca o terá, uma afirmação grotesca de superioridade para quem o alcança. É exibido sem pudor, precisamente porque se criou a ficção de que é acessível a quem se esforce. É o “mérito” que o torna aceitável.
As vidas medem-se, mais do que nunca, pelo seu peso em ouro. Não acreditam? Há uma matemática simples de fazer. Entre 2013 e 2023, mais de 26 mil pessoas perderam a vida a tentar cruzar o Mediterrâneo. Vinham em botes precários, fugidas da guerra, da fome e da miséria. Prestamos-lhes pouca atenção e, quando o fazemos, é para as temer como invasores. Mas seguimos atentamente e com ansiedade as buscas pelas cinco pessoas que naufragaram no submarino Titan, no ano passado, e cujas fortunas somadas equivaliam a 2,6 mil milhões de dólares (mais do que o PIB de Cabo Verde). E vemos agora com detalhe as vidas dos seis milionários que naufragaram num iate de luxo ao largo da Sicília.
Nuno Diniz tem razão. “Nós não somos iguais”. Só espero que um dia possamos vir a sê-lo. E essa é a diferença que nos separa.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Uma operação ao cérebro dos nossos filhos
+ A vida sobre o arame da especulação
+ A banalização do mal e o fim da política