1. O escândalo dos “Documentos do Panamá” tem a enorme vantagem de documentar a degenerescência ética da sociedade contemporânea há muito conhecida. Uma degenerescência que é de alguns, contra todos. Numa sociedade onde a economia não registada na contabilidade nacional oficial é elevada, onde o sector financeiro tem uma importância desproporcionada e aposta mais na especulação bolsista, no crédito ao consumo, nos empréstimos aos Estados debilitados, quando a dívida privada e pública atingem valores muito elevados, as vantagens de uns são as desvantagens de outros. Os responsáveis pelas fraudes têm reformas principescas e os outros é que ficam responsáveis por repor os estragos causados. Estas revelações também poderão a ajudar a compreendermos que nós, cidadãos do mundo, somos a outra face desta realidade que todos os dias nos atinge.
Quando se criam contas bancárias ou se instalam empresas fantasma nos chamados paraísos fiscais (offshores), redutos de sigilo, há mais crianças que morrem antes de atingirem um ano de idade, há mais famílias destroçadas pela guerra ou pelo êxodo, há mais fome e subnutrição, há mais doentes incapazes de aceder aos medicamentos, há mais políticos a serem corrompidos, há mais empresas honestas em dificuldade de sobreviverem, há mais tráfico de droga a gerar decrepitude social. Quando uns fogem aos impostos outros pagam mais. Quando há lavagem de dinheiro criam-se condições para mais bombas terroristas, para criminosos apropriarem-se de fundos financiadores dos Estados, chefiarem empresas legais e comprarem as empresas privatizadas. Quando a criminalidade organizada transnacional escondem o seu património aumenta-se a insegurança mundial, amplia-se o crime, a corrupção, as mortes, o infortúnio de muitos. Quando se garante o sigilo, salpicado de frágeis acordos de troca de informações, reduz-se o poder do Estado, a capacidade de intervenção das polícias, auto-reproduz-se e amplia-se a criminalidade nacional e internacional. Uma criminalidade que não é marginal na sociedade, que pode ser o proprietário da loja onde nos abastecemos, o político que elegemos, o comentador televisivo que admiramos, o amigo com quem conversamos.
2. Mossack Fonseca, advogado responsável pelas operações realizadas declarou aos jornalistas: “Nem fomentamos nem promovemos actos ilegais. Seguimos a lei ao pé da letra”. Com os esquemas de sigilo automaticamente encobriu e promoveu muitos actos ilegais, provavelmente vários bárbaros, mas na verdade ele não cometeu nem ajudou a cometer ilegalidades. E aí está o cerne do problema: os paraísos fiscais, a facilidade de criação de empresas fictícias e o encobrimento dos seus proprietários, logo o sigilo dos actos aí praticados, é uma mega estrutura mundial perfeitamente legal. A lei dos poderosos do mundo (ou não fossem os maiores países capitalistas os seus proprietários) encobre a sua própria ilegalidade. A lei existe para proteger a propriedade dos donos da riqueza. Por isso, a riqueza privada nos paraísos fiscais é pelo menos metade do produto mundial anual.
Como é que esta situação, que a partir dos anos oitenta do século passado foi cada vez mais intensa e perceptível, tantas vezes reclamada pela opinião pública e sectores políticos, como é que estes espaços, legais e poderosos, de passeio de defraudadores, corruptos, empresas fantasma e criminosos são compatíveis com a democracia? Não é a democracia o governo do povo? Não têm os cidadãos capacidade de influenciar o governo dos Estados? Ou será que os paraísos fiscais não existem, são uma mera quimera, ou, pelo contrário, é a democracia que não é o governo do povo?
Num período de declarações fiscais percebamos porque pagamos tantos impostos. Inquietemos as nossas consciências perguntando o que fizemos para combater estas situações.
3. O Observatório de Economia e Gestão de Fraude desde sempre denunciou e combateu os paraísos fiscais, centro nevrálgico da fraude e corrupção à escala mundial. Está disponível para trabalhar em conjunto com todos que pugnem por um sociedade mais ética e humana. É possível fazermos muito mais se conjugarmos vontades, perspectivas e planos de actuação. Há sempre soluções, se houver querer e poder.