It´s the end of the world as we know it (and I feel fine). Pensei imediatamente na canção dos R.E.M. ao escolher o tema que está sempre na ordem do dia. O amor. A gestão do amor, esse cimento ecológico que liga os nossos ‘eus’, que se vão desenhando na relação com os ‘eus’ os dos outros.
Quando um casal vai para a cama, não se deitam nela apenas dois: os fantasmas fazem-se convidados e a sua presença apropria-se das falas e dos gestos dos companheiros de quarto. Na intimidade, as vozes (das crenças familiares) entram em cena e tanto animam como estragam a festa – ou o porto seguro – dos cônjuges. Dos amantes.
Há uma cena célebre, no filme Vida a Dois (de Rob Reiner, com Bruce Willis e Michelle Pfeiffer, que brinca com isso mesmo: a mãe da protagonista entra de rompante no leito conjugal para lembrar à filha os valores com que a educou, na hora de esta estar prestes a tomar uma decisão no diálogo com o marido. Este, desagradado com o rumo da interação, responde-lhe torto. Já nessa altura, estava o pai de volta dele, aconchegando a almofada, a recordar-lhe como deveria comportar-se num cenário como aquele.
Um momento a dois, que até parecia promissor, acaba por se converter numa acalorada discussão, em tudo parecida com a guerra de candidatos à presidência da junta, do governo ou do País, em tempo de campanha. Ali, entre quatro paredes e sob o mesmo teto protetor, a dupla diverge, cada um dos protagonistas disputa espaço, território, apoiado em comentários e observações triviais que seriam de pouca importância e até divertidos. A cena é cómica e, de tanto ser cómica, é trágica também.
Para atear um fogo bastam as condições certas. Algumas fagulhas são suficientes para queimar a cultura conjugal. Como não se pode colocar o filme (o tempo) para trás, na hora em que estala o incêndio (a discussão) os parceiros desavindos percebem, cada um a seu ritmo, que afinal não havia seguro. Nem chegou a haver festa. Era, em ultima análise, isso que se pretendia. E não há mais nada para conversar. Silêncio. Só na fase do rescaldo é que o cérebro e as vísceras esfriam. Que se descobre se alguma coisa fundamental ficou em cinzas, ou parcialmente ou não passou de um susto a sério. E que se instala, devagarinho, a dúvida. “Porque discutimos (ou estamos à beira de voltar à carga)?”. “O que se passou aqui?”
Às vezes, lá chega a sensatez. O enlace. A leveza possível, depois da catarse de algo indefinido. Os fantasmas abandonam as personagens, depois de marcarem presença no diálogo de há pouco. Ou seja, numa cama ou noutro qualquer espaço reservado para a atmosfera íntima podem caber, não dois, mas seis, pelo menos. As figuras parentais que habitam os corpos e moldam as atitudes dos parceiros. Adicione-se aquela amiga de infância, o irmão ou as paixões que se guardam na bagagem biográfica, e uma experiência a dois é partilhada por uma miríade de alter egos. Só então, embora nem sempre, um ou ambos se dão conta das defesas que carregam – não suas, mas entretanto tornadas suas – dos parentes e de figuras próximas ou significativas.
Afinal, quantos cabem numa relação a dois? Talvez faça mais sentido indagar: quanto de mim (e não dele ou dela) me é estranho? Quem era eu, há pouco? De quem era a voz que falou ou se comportou por mim, de forma automática, como se se fosse de um programa que corre automaticamente num equipamento electrónico, sem que eu me aperceba disso? Ou só me aperceba agora, que o dano está feito?“
A boa notícia: isto é normal e não tem de ser mau. Basta ajustar o ângulo de visão e nem é preciso ser fotógrafo ou realizador. O segredo está em manter os olhos abertos, aceitar o que se vê. Simplesmente observar, sem contestar, sem resistir ou fugir. Exige algum esforço e por vezes até pode ser desconfortável ou penoso. “Eu estou a fazer o mesmo que detesto e critico na minha sogra (mãe, ex mulher, melhor amigo, etc)”. Um tiro no pé. Acontece aos melhores. E aos outros também.
O que é que isto tem a ver com o fim do mundo, tal como o conhecemos? Tudo. O nosso mundo fica (ligeiramente ou consideravelmente) abalado. O do outro, não sabemos. Afinal, não estamos na pele dele, por muito que pensemos que o(a) conhecemos como a palma da nossa mão. O que fazer a partir daqui? Tudo como antes? Nem sempre. Passa-se à fase do “dormir sobre o assunto”, do “não se fala mais nisso”. Esta é a fase crítica, pois tanto pode haver, como não haver, lugar para trocar de mimos ou recriar a cena desejada no início (agora com um novo rumo e significado, porque se reconhece ter entrado num nível diferente do “filme”).
O fim do mundo (o drama, a fúria, o sentimento de ofensa, mágoa, o desespero), não é, apenas, o fim do mundo. É, contudo, o fim do mundo (da relação) como o conhecemos (o padrão de comunicação instalado, e atualizado, nem sempre de forma consciente). E nessa medida, não deixa de ser a possibilidade de um começo. Uma tomada de consciência e um sinal de alerta, para colocar na bagagem. A oportunidade para não oferecer resistência ao que se torna óbvio, sob um novo olhar, e seguir em frente, com um desafio diferente, em que a vontade se sobrepõe ao instinto e à defesa automática.
Não há culpas nem falhas. Há ensaios e erros, o método experimental que se joga no laboratório da intimidade. “Tu é que começaste”. “Tu és igual ao teu pai”. Estas e outras jogadas baixas, são próprias do medo de enfrentar aqueles convidados fantasmas que o “tu” representa na reunião intima. E, mais intimidante ainda (a intimidade pode ser intimidante!), o papel e o lugar em que o “eu” se coloca, nessa simetria de forças. Sim, todos somos cúmplices. “Cada um tem os parceiros que merece”. Ou seja, de que precisa (e escolheu ter ao seu lado nisto) para evoluir enquanto pessoa.
O melhor de uma discussão séria (que é quase sempre provocada por coisa pouca, micro embirrações e pormenores sem importância) não é, contrariamente ao que tantas vezes se pensa, a reconciliação. O melhor de uma discussão séria é o que irrompe dela e parte a loiça. É o que transtorna a pacatez do porto seguro. É a inovação que daí resulta, uma mais valia inquestionável na gestão conjugal. Cada um dos “acioninistas” ou membros da “sociedade” (“limitada” ou de outro tipo) terá de reposicionar-se a cada momento, diferenciar-se nas suas opções estratégicas, com vista a otimizar o capital e o know-how daquela missão conjunta.
Ir ao encontro de posições (o “nós”, o célebre 1+1=3) consegue-se. Mas essa plataforma comum requer agora uma noção mais clara de qual é exatamente a posição que cada um ocupa no cenário (na cama, na sala, na cozinha, diante do grupo de amigos, nos eventos e rotinas de família). O fim do mundo (como o conhecíamos, no cenário da mente e dos corpos falantes) pode muito bem ser uma dádiva. Um catalisador. Uma sondagem à boca das urnas. E criar o nível de tensão certo que antecede as pequenas e grandes revoluções. Basta haver massa crítica, para que nada fique como antes.
Compreende-se que a primeira reação seja a de ceder à tentação de passar a batata quente, enfiar a cabeça na areia, deixar que tudo se resolva por si, ou radicalizar e sair de cena. Bom mesmo é quando se passa à cena seguinte, talvez até com um novo guião adaptado. O mínimo que pode acontecer, depois de “estar com a lua” e chegar ao fim do mundo, é mesmo abrir-se à lua nova (“de mel?” Lamentamos, a gerência informa que não há garantias). E, sem perceber bem como, nessa lua “escura” já se adivinham novos “clímaxes”. Sob o teto. Sob o céu.