Devagar que tenho pressa, diz o provérbio. A tecnologia, diz-se, serve para nos facilitar a vida. Ou seria, já que são mais as vezes que nos tira do sério. Tomemos dois exemplos simples.
1. ”Foi o telemóvel, estúpido!”
Pergunta: para que serve o editor ou corretor automático de texto se, em vez de completar as palavras que queremos escrever e acelerando o processo, nos converte “automaticamente”, em agentes de gafes e autores de mensagens capazes de fazer corar?
Já me aconteceu despedir-me de alguém com um “abraço” e perceber que, afinal, enviei um “baraço”. A ‘culpa’ não morre solteira: ora se deve ao deslize do dedo, que toca na letra ao lado e confere à palavra intencionada um significado inédito, ora à escrita inteligente, que toma as rédeas do processo e resulta na humilhação de pedir desculpa pela situação constrangedora. Não uma, mas várias vezes, com erros somados que se acumulam consoante a pressa em reparar o equívoco (proporcional à gravidade de gafe).
Tudo o que importa a seguir é livrar-se prontamente da responsabilidade do ato. Qual criança apanhada em falta a fazer algo que não devia, sai um “Foi o corretor”, esse maléfico terceiro elemento (não eu, que NUNCA seria capaz de dizer, teclar, tal coisa!). Esta luta virtual gera entropia e provoca danos colaterais que o corretor não “corrige”.
No meio disto, há sempre quem consiga faturar, como a autora americana Jillian Madison, que se tornou bestseller com o livro Damn You, Autocorrect!. O acrónimo DYAC entrou na linguagem comum (consta no site InternetSlang). Basta googlar a sigla para encontrar milhares de fotografias de ecrãs móveis (screen shots) com diálogos insanos e, até, compilações, em formato Top + (desde 2013, baseadas em partilhas de Facebook, Tweets, comentários e pageviews), para já não falar das apps, onde se tem acesso aos ‘clássicos’.
E que tal voltar à base, ou seja, alterar as configurações do equipamento? “Ah, pois… leva algum tempo”. Além disso, um pouco de perversão involuntária à conta da (in)correção automática não mata e traz alguma dose de humor ao quotidiano… (outra maneira de dizer, sem intenção até, “que se lixe o acordo ortográfico”).
2. “Porque é que não respondes?”
Anda meio mundo a praticar alegremente o Phubbing. Trata-se, já todos sabem, de ignorar olimpicamente quem está à volta, só tendo olhos e dedos para essa presença inteligente, o telemóvel. À semelhança do carro, ele gera ciúmes mortíferos. Não admira, pois, que tal comportamento seja etiquetado pelos que se sentem – legitimamente ou não – excluídos, de “falta de educação” (leia-se, deslocalização da atenção).
Os smartphones simbolizam a cultura do “sempre em on”. Estou aqui, ali e acolá, AGORA e JÁ. Nada fica para ontem. E a prova de que não estou a exagerar está noutro acrónimo: FOMO, ou Fear of Missing Out. Medo! Não queremos ficar de fora, temos de estar atentos, não vá o diabo tecê-las e uma pessoa cair no esquecimento.
Pergunta: Se ligar para alguém – ou melhor, se teclar, no Whatsapp, no Messenger ou através de simples SMS – e esse alguém não atender / responder nos próximos segundos, minutos ou (sendo tolerante) nas próximas horas, será que é uma omissão grave, passível de castigo?
Aqui, a irracionalidade humana ganha corpo e tudo pode acontecer, dependendo do perfil de personalidade do usuário do equipamento: por melhor que este seja, a sua impecável lógica inteligente é vencida pelo arsenal de defesas que muitos desconhecem em si. Até ao dia.
Há aqueles que descarregam a frustração no frágil aparelho (o ecrã tátil é que paga!). Outros optam por dirigi-la ao destinatário da chamada /mensagem. Sim, “essa vil criatura” que nasceu para desconsiderar e gozar com os sentimentos alheios e que ainda tem a lata de inventar desculpas quando se tenta apurar toda a verdade (“estava numa reunião”, “fiquei sem bateria” ou, no pior e mais descarado dos cenários, “não vi, estava ocupado /a”).
Praticamente todos não resistem à tentação de aplicar ‘sanções’ à medida para aliviar, mesmo que temporariamente, o estado de crise do ego. Consideremos três:
– Guerra fria: entrar em greve de voz (não atender) ou de texto (dar folga ao teclado) por tempo indeterminado, apreciando a fantasia ”Não perdes pela demora” ou “Fui. Gostaste?”
– Bombardeamento: o clássico “não vai a bem, vai a mal”, ou seja, soltar, sem reservas, a adrenalina a mais no sistema, graças ao tarifário de chamadas e mensagens ilimitadas.
– Nomadismo calculado: cultivar a lei da intermitência, baralhando o ‘adversário’, ora deixando-o pendurado, ora desarmando-o com mensagens imprevisíveis de teor simpático; aqui, a vingança é um prato frio que se serve com requinte gourmet.
E que tal seguir o lema “quando não sabes o que fazer, não faças nada”? Uhm… (pausa para processar) “Como? Não fazer nada?!… Pois, dizes isso porque não foi contigo.” Está bem.
Depois disto, digam lá se o admirável mundo da tecnologia, em que nos habituámos a confiar tanto (talvez demasiado), não nos (des)facilita a vida…