Desde a campanha eleitoral à discussão do programa de Governo, a imigração tornou-se um tema quente de debate, já não só para a extrema-direita mas também para a Aliança Democrática e até em alguns setores do Partido Socialista. Em 2022, viviam em Portugal 782 mil imigrantes, correspondendo a 7,5% da população nacional. Este número duplicou desde 2015, em que se registavam apenas 389 mil estrangeiros a residir em Portugal. O número de entradas anuais mais que triplicou, de 37 mil para 118 mil entre 2015 e 2022. Estima-se que, em 2023, este número tenha sido significativamente maior, alavancado pela entrada em vigor do Acordo de Mobilidade da CPLP.
As elites políticas preocupam-se porque sentem uma crescente rejeição popular da imigração. Já assim tinha sido no início do século. Como José Pedro Zuquete evidencia no livro Populismo: Lá Fora e Cá Dentro, como líder do CDS-PP, Paulo Portas liderava um discurso anti-imigrante de “portugueses primeiro”. Portas não era o único a fazer o discurso de Trump antes de haver Trump. Durão Barroso também disse, como Trump quase duas décadas depois, que as comunidades imigrantes «trazem problemas de marginalidade, toxicodependência, doenças infetocontagiosas e criminalidade.»
Em 2002 e 2004, na pergunta do Inquérito Europeu de Valores sobre se a imigração torna o País melhor ou pior, a resposta média dos portugueses era inferior a 4 (sendo 0 a imigração torna um país pior e 10 um país melhor). Contudo, em 2018 e 2020, a média das respostas já tinha subido para 5,8 e 5,5 respetivamente. No seu discurso na sessão solene do 25 de abril de 2023, Marcelo elevou mesmo essa condição integradora de imigrantes como “vocação histórica” da portugalidade e “desígnio nacional”. Até há bem pouco tempo, Portugal encontrava-se entre os poucos países da Europa onde mais pessoas vêm a imigração como oportunidade do que como problema, com muito poucos a identificarem-no como um problema do nosso país.
Isso mudou muito rapidamente. Segundo as sondagens do ICS/ISCTE, em menos de um ano, entre fevereiro e novembro de 2023, à pergunta “Em que medida deve Portugal deixar que pessoas de países mais pobres fora da Europa venham e fiquem a viver cá?” registou-se uma subida das respostas “Deve deixar vir poucas pessoas/ninguém” de 34 para 61% e, inversamente, um decréscimo do “Deve deixar vir muitas/algumas pessoas” de 62 para 37%.
Tal não será, porventura, surpreendente se pensarmos que, apesar de continuar entre os países da União Europeia onde a imigração menos pesa no número total de habitantes (18.º em 27), longe do Luxemburgo (47%), Malta (21%), Chipre (19%) ou Áustria (18%), Portugal é dos países onde as pessoas têm uma perceção mais inflacionada da dimensão da imigração no seu país. A isto se somam a crise emergente no setor da habitação e a perceção absolutamente errada mas convenientemente alimentada, mais recentemente por Pedro Passos Coelho, de que a imigração tem gerado um aumento do crime.
As perceções combatem-se com factos. Os preconceitos combatem-se com valores. Para qualquer progressista tem de estar fora de questão repudiar a imigração ou replicar os discursos que a direita faz com o intuito de a travar. Tal como no famoso dilema da Terceira Via, que colocou a esquerda democrática a aceitar acriticamente os pressupostos da economia de mercado, o original será sempre melhor que a cópia e eleitores assustados com a imigração nunca acharão a esquerda humanista uma melhor combatente do fenómeno da imigração. Aliás, em Inglaterra e nos Estados Unidos, as governações progressistas de Gordon Brown e Barack Obama foram adeptas de restrições à imigração que só vieram validar e alimentar o discurso que uma direita radical sua opositora então fazia. Sem surpresas, ambas foram sucedidas pela direita anti-imigração.
Não podemos, porém, ignorar a dura realidade de falta de integração que se espalha rapidamente por todo o território. Ao contrário de outros países, o problema não é o emprego. Os imigrantes vêm porque há emprego que, de outra forma, os portugueses não fariam. Portugal tem mesmo a 5.ª maior taxa de atividade entre imigrantes de toda a União Europeia – 76,9%, quase mais 20 pontos percentuais do que o verificado na população nacional. Apesar de terem salários 5% mais baixos e enfrentarem o dobro da precariedade que os portugueses, são também empreendedores, com cerca de um em cada 6 a criarem o seu próprio negócio. Tal faz dos imigrantes não só indispensáveis ao funcionamento de vários setores económicos, como também contribuintes líquidos do nosso sistema de segurança social, com um saldo líquido entre contribuições pagas e prestações recebidas de 1604 milhões, representando 40% do excedente da Segurança Social.
Os desafios são outros – a habitação escassa e sobrelotada, a língua e a integração cultural ou, ainda, o sucesso escolar e a sua integração a meio do ano letivo. Nalguns territórios, a imigração exerce ainda uma pressão considerável sobre a administração descentralizada do Estado – serviços de finanças, segurança social ou centros de saúde – e, ainda, sobre a capacidade de atendimento de serviços essenciais como a banca. Testemunhei isso em primeira mão em Odemira, no já longínquo ano de 2021, tendo conseguido aprovar no Orçamento do Estado de 2023 a criação de um instrumento financeiro de apoio à emergência demográfica, para apoiar os territórios nesta adaptação.
A ideia, apresentada no Programa de Governo, de voltarmos a ter quotas que limitem a entrada a pessoas já com contrato de trabalho em Portugal é risível. É-o por uma questão de princípio – «seja bem-vindo quem vier por bem», já cantava Zeca Afonso. É-o por ser danoso para o crescimento da nossa economia. É-o, sobretudo, porque, pelo menos até 2022 inclusivé (ainda não estão disponíveis dados de 2023), a maioria dos vistos atribuídos era de reagrupamento familiar, reforma ou estudo.
Pouco adianta querer controlar a imigração enquanto houver escassez de mão de obra em Portugal. Sob qualquer pretexto, as pessoas virão em busca de melhores oportunidades. Será como querer travar o vento com as mãos. Países como o Reino Unido e a França, com investimentos muito consideráveis no controlo das suas fronteiras externas, fracassaram nessa tentativa. Isso só se agravará à medida que as alterações climáticas tornarem uma grande parte dos territórios entre os trópicos inabitáveis.
A Portugal caberá honrar os seus pergaminhos humanistas e melhor acolher. É mantendo abertas as vias da imigração legal que podemos melhor controlar que imigração recebemos, o que ela faz e como é que ela vive. É honrando a Portugalidade integradora que melhor saberemos preservar quem somos e assegurar a prosperidade que queremos ter.
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