Nas últimas semanas as leis laborais têm estado no topo da agenda política. Em boa hora, os parceiros parlamentares à esquerda (BE e PCP) reforçaram a importância deste tema na discussão orçamental, alargando o âmbito das respostas ao país que este processo deve dar. Doa a quem doer, este era um tema que precisava de decisões, tendo o Governo iniciado uma reflexão sobre as leis laborais há mais de um ano, sob o mote “Agenda para o Trabalho Digno”.
Sendo o trabalho a principal forma de gerar riqueza, é apenas natural que a sua regulação seja matéria central na definição de que país estamos a construir. O trabalho é um direito e, além de ser o sustento económico da maioria de nós, é também uma avenida de realização pessoal. A sua condição reflete-se na dignidade de cada um de nós e, por isso, resistimos à sua mercantilização. É nessa dimensão que se inscreve, sobretudo, a motivação para uma forte legislação laboral. Todavia, a sua dinâmica económica não é menos relevante.
Regular o trabalho afeta estruturalmente o nosso perfil de desenvolvimento económico. Ao influenciar quanto trabalho uma empresa precisa de contratar e a que custo, a legislação laboral influencia também a escolha de padrão tecnológico e a sua evolução. Como a história económica demonstrou amplamente, a valorização do fator trabalho, desde que não asfixiante da competitividade, é um acelerador da industrialização e de ganhos de produtividade. Sobra a pergunta – se a sociedade tem a ganhar com isso, porque é que a “mão invisível” do mercado não trata disso? Os motivos são evidentes a quem analisar, de forma mais profunda e estruturada, o mercado de trabalho. Afinal, este, muitas vezes, funciona sob oligopólio do comprador e com fortes tendências para se cristalizar, seja pelo custo e risco de abandonar o emprego que temos seja pelo custo de procurar um novo. Por outras palavras, o patrão tem mais força do que o trabalhador e, por isso, as leis laborais tendem a reequilibrar o plano de forças no trabalho.
É para esse equilíbrio que, tendencialmente, as organizações internacionais têm revisto a sua orientação, abandonando as velhas conceções de que um mercado de trabalho quanto mais livre fosse, mais dinâmico era e mais emprego e rendimento criaria. Hoje os mais insuspeitos preocupam-se com a precariedade e com a necessidade de não alimentar um modelo de desenvolvimento assente nos baixos salários. O desafio, como em tantas outras áreas das políticas públicas, é onde está a moderação, onde paira a virtude – ou, em economês – qual o nível ótimo de regulação das leis laborais?
No caso do mercado de trabalho português, os vícios recaem sobretudo sobre a nossa geração. Atualmente o emprego já recuperou para níveis pré-pandemia e a taxa de atividade conhece máximos, mas esta situação que alguns caracterizam como próximo do pleno emprego ainda não se reflete nos jovens, que continuam a ter uma taxa de desemprego 3,5 vezes superior à taxa de desemprego geral. Este rácio posiciona Portugal como um dos mercados de trabalho europeus onde os jovens enfrentam maiores dificuldades para encontrar trabalho, especialmente trabalho com vínculos laborais, horários e salários dignos.
Os dados sobre a qualidade do emprego não são os mais encorajadores. Recentemente, a Gulbenkian publicou um estudo do Professor Pedro Martins sobre a equidade intergeracional no trabalho em Portugal que revela o estado real do trabalho entre os jovens. Apesar do crescimento da produtividade, a geração que nasceu na década de 90 aufere os mesmos salários do que a geração de 70, sendo que, como na época, cerca de 30% das pessoas empregadas da nossa geração recebem o salário mínimo, contrariando a descida dessa proporção que se verificava em gerações anteriores. Os salários são esmagados pela precariedade, tendo os contratos a termo um peso de cerca de 65% na nossa geração, comparado com 40% na geração de 80 e entre 20 e 30% para as anteriores gerações. Este valor é ainda maior se olharmos apenas para as contratações, onde 80% dos novos empregos para jovens da década de 90 são através de contratos a termo.
É neste contexto que deve ser analisada tanto a reforma das leis laborais que entrou em vigor em 2019, como a proposta de reforma que consta da Agenda para o Trabalho Digno, aprovada pelo Governo na semana passada. Se foi importante o Governo ter impedido que um jovem fosse contratado a termo só por ser jovem, não se deve ignorar o poder da redução do tempo máximo em contratos a termo e a redução do limite às renovações destes, complementado que foi pelo CONVERTE+, um incentivo financeiro à conversão para contratos sem termo que fez a diferença na vida de milhares de pessoas. A contrapartida à data foi, infelizmente, o aumento do período experimental, mas com a condição que os estágios profissionais, que a nossa geração conhece bem, passarem a contar para o tempo do período experimental.
Na passada semana, esse travão à precariedade foi mais fundo. Se já não fosse suficiente a penalização (através de uma nova contribuição social) dos contratos a termo, o Governo propõe agora subir a compensação por despedimento para estes contratos, dando mais um incentivo para que nos deixem ser efetivos. Também nas horas extraordinárias, a reposição dos valores a pagar para os níveis pré-Troika a partir das 2,5 horas semanais sugere um considerável custo para quem exigir horários mais alargados. Estas medidas contribuirão para melhores salários nos jovens, a que se junta o aumento das bolsas dos estágios IEFP para licenciados.
A Agenda para o Trabalho Digno apresenta outras medidas importantes para o combate à precariedade. Numa economia ainda bastante ‘informal’, é bem-vinda a criminalização do trabalho totalmente não-declarado. Com o crescimento da indústria do “outsourcing” e do trabalho temporário, a sua regulação, nomeadamente assegurando que quem trabalha permanentemente numa empresa de trabalho temporário tem que ter um contrato de trabalho permanente, é fundamental. A economia das plataformas também não escapa, tendo que assumir responsabilidades por quem delas depende para viver. Finalmente, a Autoridade para as Condições do Trabalho vê reforçados os seus poderes, tanto para converter contratos precários em contratos sem termo, como tornando permanente a capacidade ganha na pandemia de travar despedimentos ilegais.
As próximas semanas ou meses vão-se continuar a centrar sobre os detalhes em que a esquerda não concorda. Contudo, é tão ou mais importante focarmo-nos naquilo em que concordamos e na visão que temos para o país e para a economia que queremos. Valorizar o trabalho é fundamental não só para a dignidade humana de cada um – e uma sociedade mede-se também pela dignidade que assegura aos seus mais desfavorecidos – mas também para impulsionar o desenvolvimento tecnológico, o investimento em ganhos de produtividade e, assim, para reforçar a nossa competitividade e crescimento económico. Recusar os passos ambiciosos e importantes que estamos a dar nesta área, ou até menoriza-los, é ser cúmplice do impasse com que a nossa geração se enfrenta no mercado de trabalho. Como até o pai do conservadorismo, Edmund Burke, sabia, «para que o mal triunfe, basta apenas que os homens [e acrescento, as mulheres] de bem não façam nada».
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