Kiev, Estação Central – 7.04 horas da manhã (5.04h de Lisboa) 23 de Agosto de 2023: Há sol em Kiev, mas a manhã será de consternação, pesar e mágoa. O Presidente da República é rapidamente recebido pela embaixadora da Ucrânia em Portugal, e pelo protocolo de Estado. Também lá está o nosso embaixador, que será condecorado, merecidamente, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante. O tempo é escasso, e há um duro e penoso caminho a fazer: Bucha, Moshchun (as trincheiras), Horenka e a ponte de Irpin.
Chegar a Kiev, ao amanhecer, foi um momento de inesperada tranquilidade, depois de 14 horas de carro e comboio, desde Varsóvia. É um destino ansiado, programado, antecipado. Há bulício na estação central, como se fosse um tempo de normalidade. Mas é urgente partir.
Bucha está no caminho de todos os chefes de Estado e de Governo que vão a Kiev, mas que merece ser percorrido. Andado. Trilhado. Não há como fazer de conta. Passar ao lado. A Igreja de St. André e de Todos os Santos, a ser reconstruída, serviu de vala comum para centena e meia de homens, mulheres e crianças, executadas pelas tropas russas. A sangue-frio. Com um tiro na cabeça. A fotografias são pungentes, o memorial é silencioso. Ali verga-se a cabeça e a consciência. Não há desculpas. Nem justificações. Nem comentários. Bucha é o fim do mundo civilizado. Que mágoa! Que pesar!
Nas trincheiras de Moshchum, e no perímetro em redor, percebe-se a ferocidade dos combates. São jovens a maioria das vítimas dessa batalha insana. Nas árvores, muitas delas decepadas, estão as fotos dos rapazes e raparigas que caíram naquela intempérie de ferro e fogo. Também lá estão, como se congeladas, as suas canecas, as suas colheres, e as flores colocadas pelos seus familiares. Arrepia. Ali combateu-se com bravura. O Presidente entra e percorre uma trincheira improvisada, feita à pressa, com os troncos da floresta. Impressionante. Tudo sem vida. O único som vem de um gravador, que lentamente, pausadamente, invoca o nome dos soldados ali caídos. É um memorial intangível. Arrepiante.
Em Horenka, num bairro de apartamentos, é visível o absurdo desta guerra. Prédios esventrados, destruídos, abandonados. Restam armários e estantes penduradas a céu aberto, com as garrafas, as chávenas e os copos da família. É ali, naquela confusão, onde está um mural de Banksy, que subindo um andar, com o Presidente, Pacheco Pereira encontra e recolhe uma publicação do dia do ataque, parcialmente queimada. Mais uma peça desta guerra para o «Arquivo Ephemera».
Em Irpin, finalmente, um raio de esperança. A ponte destruída está na mesma, intocável, com um carrinho de bebé esturricado, mas ali ao lado, ainda em cimento bruto, avança a nova ligação entre as duas margens. É um poderoso símbolo da inabalável firmeza e vontade ucraniana. A reconstrução não espera pelo fim da guerra. Se voltar a cair, outra se erguerá. O regresso a Kiev faz-se em silêncio.
Amanhã: As Lendas da Ucrânia (IV)
Notas de Rodapé: 1. Em Kiev não se anda, corre-se. As cerimónias são curtas, as visitas duram minutos, e a comitiva sempre em velocidade furiosa. Não há tempo a perder. Não há descanso. Bem ao ritmo e gosto do Presidente.
2. A Embaixada portuguesa em Kiev nunca esteve fechada, desde o primeiro tiro russo, a 24 de Fevereiro de 2022. A Ucrânia nunca esquecerá essa decisão nacional. Está no perímetro dos edifícios governamentais e presidenciais, e isso complica a vida do nosso embaixador, e dos outros dois diplomatas. São todos muito novos, muito ativos, e muito eficazes. Portugal é reconhecido em Kiev. E na Ucrânia.
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