A imagem mais viva e mais profunda de Maria Barroso (MB) com que para sempre ficarei é a de uma rara mulher-cidadã. Com uma coragem e uma determinação tão firmes como doces e serenas. Figura frágil, com a força de um alto fogo interior. Mulher-cidadã, e artista, num qualquer palco da vida ou sem precisar de palco nenhum, a bater-se pela democracia e pela justiça, a dizer versos. A dirigir um grande colégio, sustentáculo da família, com o marido na prisão ou no exílio; a enfrentar circunstâncias muito difíceis antes do 25 de Abril e algumas mesmo depois; na intervenção ?política, social e cultural; no dia a dia familiar e profissional.
Se tento traduzir aquela imagem mais viva e profunda em imagens concretas do riquíssimo percurso de vida de MB, as que mais se me impõem não têm a ver com a mulher do chefe de Governo ou do Presidente da República, a “primeira-dama”. Mais, tendo MB – pela sua cultura, simpatia, sensibilidade, sensatez – desempenhado de forma exemplar tal função, nas áreas da ação e da representação, nunca a consegui ver e tratar primacialmente como tal. Porque, na minha ótica, isso seria diminuí-la.
Toda a vida MB foi essencial para Mário Soares. Também como “primeira-dama”, no diversificado apoio que lhe deu – apoio algumas vezes crítico, sem o deixar transparecer para o exterior. Foi-lhe essencial, mas com a sua personalidade, o seu pensamento e percurso próprios, embora este a partir de certa altura inextricavelmente ligado ao do marido. ?Por outras palavras, e tanto quanto se pode separar, creio que mais importante do que a Maria de Jesus Barroso Soares, “primeira–dama”, foi sempre a Maria Barroso: só a segunda dava à primeira a dimensão que tinha.
Evidentemente me recordo, por exemplo, estava lá, de MB, mulher do primeiro-?-ministro do 1.° Governo Constitucional, então famoso e reconhecido em toda a parte, em Atenas, em Delfos e até a abrir um baile num navio para as ilhas gregas (… comigo, porque Soares não dançava); da “primeira-dama” a suar as estopinhas em múltiplos compromissos numa longa viagem ao Brasil ou montada num elefante na Índia, em Jaipur; com presidentes, reis, rainhas, grandes do mundo.
Mas as imagens marcantes, decisivas, que não se me apagam, são antes as de Maria Barroso, defensora dos Direitos Humanos, atriz e declamadora, com os estudantes em Coimbra ou numa homenagem a Alves Redol em Vila Franca, no início dos anos 60 (então a conheci); a dizer, como ninguém, os versos dos poetas do Novo Cancioneiro; a representar no S. Luiz o monólogo de Jean Cocteau A voz humana, num espetáculo que a polícia proibiu e acabou por só se realizar um dia (tendo a minha crítica para o Diário de Lisboa sido integralmente cortada pela censura); no aeroporto de Lisboa quando Soares partiu para o desterro em S. Tomé e a polícia atacou os que dele se foram despedir; a discursar no Congresso da Oposição Democrática de Aveiro; na varanda de Santa Apolónia à chegada, com o marido, do exílio em Paris; a intervir com emoção, inteligência, pertinência, em sessões dos mais diversos géneros; em certas situações que como seu amigo pude testemunhar.
Até ao fim Maria Barroso manteve uma presença assídua, atenta, ativa, na vida ?cultural, social e política portuguesa. ?E manteve sempre também a coerência, a autenticidade, a fidelidade a princípios e a si própria. A forma como viveu a Fé nos últimos anos, após o acidente que deixou seu filho à beira da morte, constituiu mais uma expressão disso mesmo. Como o constituiu igualmente o facto de, já muito frágil, continuar a dizer, com a mesma força e vibração de antigamente, os poemas de resistência e combate de há muitas décadas.
Por tudo isto, e muito mais que aqui não cabe, Maria Barroso fica como símbolo de mulher-cidadã que ao longo de uma longa vida em várias frentes combateu pela liberdade e pela dignidade humana. E que sempre que foi preciso ergueu a sua voz para dizer “não”*, para pugnar por causas e valores.
* Como agora o povo grego fez…