Há cerca de 40 anos, foi publicado o livro de António Marques Bessa intitulado Quem Governa?
Sendo ele meu professor, amigo e eu sua assistente naquele tempo da cadeira de Geopolítica e Geoestratégia (numa altura em que ainda sabíamos às quantas andávamos), obriguei-me a lê-lo, pese embora a densidade da escrita e sobretudo o cunho duma certa direita progressista que nem por isso deixava de chocar com a ideologia que mantenho até hoje.
Não obstante, o tratado – porque dum tratado se tratava – acabava por responder à pergunta formulada, coisa que hoje dificilmente seria possível .
Perante os últimos acontecimentos, não apenas em Portugal, mas um pouco por toda a parte, temos que nos render à realidade de estarmos a ser governados por uma entidade completamente difusa e ininteligível para a maior parte de nós: aquela que dá pelo nome de Inteligência Artificial.
Já lá vai o tempo em que a ficção no-la apresentava em forma dum robô humanizado em forma de garoto (nada de reborns!) que quando ativado criava sentimentos em relação à pessoa que detinha a palavra-chave.
Para quem não está lembrado, o filme chamava-se exatamente IA e fazia chorar as pedras da calçada perante o robozinho votado ao ostracismo.
Hoje, a Inteligência Artificial já não é uma ficção, mas sim uma realidade que não tem rosto de criança e, no lugar do coração, tem algo a que chamam algoritmo e que define as nossas decisões, os nossos medos, as nossas necessidades mesmo antes que tenhamos deles consciência.
E se a IA nos ajuda com as nossas pesquisas e já nos é quase essencial na procura de respostas para o nosso dia-a-dia, a sua ascensão no campo político é assustadora.
Os discursos anti-imigração não aparecem nem por acaso nem crescem por milagre. Eles são alimentados por retóricas e câmaras de eco baseadas no medo e na perceção de insegurança também ela criada e fomentada por relatos não comprovados que alastram sem controle
Incontestavelmente a utilização da IA permite uma melhor análise de dados eleitorais, otimização de campanhas e a personalização de mensagens políticas. É exatamente nesta última que a questão da manipulação do eleitorado se coloca com uma enorme e crescente preocupação. Com efeito, a personalização das mensagens assenta na microsegmentação dos eleitores com base nos seus comportamentos digitais. Plataformas como Facebook, Twitter, YouTube ou TikTok são alimentadas por IA e os conteúdos que nos chegam à palma da mão são organizados de forma personalizada em bolhas informativas que não deixam lugar para os pontos de vista contrários.
Durante a última campanha para as legislativas, circularam nas redes várias fotos de locais europeus emblemáticos, repletos de muçulmanos em oração. Tratou-se, claro está, de uma manipulação e de fakephotos, mas nem por isso deixou de ter efeito em cidadãos já predispostos a mensagens do mesmo tipo.
Os discursos anti-imigração não aparecem nem por acaso nem crescem por milagre. Eles são alimentados por retóricas e câmaras de eco baseadas no medo e na perceção de insegurança também ela criada e fomentada por relatos não comprovados que alastram sem controle.
Hoje em dia a mentira é assumida pelos atores políticos quase com orgulho e divulgada sem escrúpulos. Sistemas baseados em IA têm sido usados para gerar fake news, deepfakes e campanhas de desinformação em massa destinadas a confundir eleitores e a corroerem a confiança no processo democrático.
O objetivo final é a criação duma sensação de caos que legitime regimes autoritários como aparente solução.
Ao não entender conceitos como “ética” ou “moral”, o algoritmo apenas se regula pelos indicadores de tempo de permanência e de interação dos usuários, o que transforma as plataformas que utilizamos em espaços férteis para a propagação de discursos de ódio.
Ora, há décadas que todos os estudos dedicados à análise dos efeitos dos media demonstram que conteúdos emocionalmente extremos produzem uma maior atenção e reação por parte dos recetores. Nos dias de hoje, essa reação reflete-se nos cliques e likes que alcança e nos comentários e partilhas que gera, criando-se um efeito de “bola de neve” ao definir o que pretendemos ver, ouvir, partilhar.
O combate à disseminação dos discursos de ódio é um desafio multidimensional que combina os incentivos económicos das diferentes plataformas e a falta de regulação eficaz.
Perante este cenário pouco animador e os discursos de ódio que vão alastrando como maré negra nas diferentes redes, a pergunta “quem governa?” é cada vez mais difícil de responder.
As linhas populistas e extremistas que parece terem infestado o mundo inteiro são o resultado deste Matrix em que vivemos e que, mais cedo ou mais tarde, caso não reajamos e regulemos a tempo, levar-nos-ão a ditaduras sufragadas.
Longe de se encontrar imune, Portugal está hoje muito perto de assumir que já não é o povo, mas sim o algoritmo quem mais ordena.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.