Foi há cerca de 20 anos numa conferência na Gulbenkian. Não recordo o nome, mas sei que se tratava de debater questões de política internacional no século XXI.
Estavam presentes representantes de todo o mundo. A dada altura da sua apresentação, um dos participantes, americano, disse com todas as letras que o modelo da União Europeia era um projeto condenado ao fracasso, porquanto os diferentes países que a compunham nada tinham em comum e, pior, tinham um histórico de guerra entre si. Nem sequer partilhavam uma língua, enfatizava.
Na altura, aquela apresentação caiu-me mal. Uma coisa era um de nós, europeu, criticar a UE, outra era ser um americano a fazê-lo, pelo que me insurgi publicamente.
No entanto, e aqui onde possivelmente nenhum filho do tio Sam me lerá, não deixava de ter razão.
A União Europeia manietou-se na tentativa de criar um sistema próprio e único, baseado no entendimento total dos seus membros. O resultado está à vista: a obrigatoriedade duma unanimidade entre todos inviabiliza, entre outras questões, a existência duma política externa comum.
Em tempos normais, tal situação seria já bastante preocupante. Acontece que não vivemos tempos normais, pelo que, mais do que preocupante, torna-se agora perigosa e sobretudo contrária aos princípios que estiveram na base desta construção.
Os movimentos migratórios para a Europa são um dos temas que mais dividem os 27 países membros.
O Pacto de Migrações aprovado é uma nítida cedência às políticas restritivas da Hungria secundada pela Polónia e agora – pasme-se! – pela França e pelos Países Baixos, vulgo, Holanda.
Portugal esteve bem ao declarar que este não é o Pacto que gostaríamos. O problema é que pouco pode fazer perante esta limitação das decisões com base na unanimidade
Portugal esteve bem ao declarar que este não é o Pacto que gostaríamos. O problema é que pouco pode fazer perante esta limitação das decisões com base na unanimidade.
O jornal Público trazia esta terça-feira, 13, a notícia de que França e Holanda pretendiam a detenção de crianças migrantes na fronteira externa da União.
Podia ser uma piada de Carnaval e, mesmo assim, de muito mau gosto.
Infelizmente, não é.
Tentando ser o mais objetiva possível, vejamos o que se entende, em primeiro lugar, por “crianças”. Segundo a Declaração dos Direitos das Crianças adotada pela Organização das Nações Unidas e ratificada por todos os países que compõem a União, criança é todo o indivíduo até aos 18 anos de idade.
Não obstante alguma diferença existente relativamente à legislação laboral e penal dos 27, a condição de “menor” ou “ criança” não muda.
Vejamos agora o que significa “menor não acompanhado” e como surge em situação de fluxo migratório.
Considera-se que é todo o indivíduo menor (de acordo com a Declaração já mencionada) que se apresente na fronteira sozinho, sem familiar direto, ou alguém que possua a sua tutela.
As crianças podem chegar à fronteira desacompanhadas por diversos fatores. Desde logo, podem ter saído do seu país sozinhos. Situação que não é despicienda no caso de fuga a cenários de guerra. Recordemos a história do menino de 11 anos que saiu sozinho da Ucrânia e chegou à fronteira da UE, a fim de se reunir com familiares que já aqui se encontravam. Foi alvo de notícia e a sua saga vista como um ato de heroísmo. Pelas novas regras, estaria detido.
Pode acontecer que, ao longo da dura jornada desde o país de origem até ao destino, tenham sido separados, por qualquer razão, dos seus pais ou familiares. É algo que acontece de forma bem mais usual do que se pensa e basta fazer um pequeno esforço de imaginação para que possamos antever estas vicissitudes.
Por fim, existem os “falsamente acompanhados”, ou seja, os que se apresentam na fronteira com um ou mais adultos que não têm qualquer tutela sobre estes menores e que, muitas vezes, nem sequer são familiares.
Esta situação leva-nos à questão dos “tios” que vêm mencionados no pacto.
A posição da UE não tem em conta o facto de “tio” ser uma espécie de acrónimo de pessoa em quem se deposita confiança. Acontece muito nas nossas aldeias ainda hoje sem que tal título implique um vínculo familiar.
Estes “tios” são, muitas vezes, pessoas que ao longo do caminho se responsabilizam pelos menores. Estou em crer que a maioria o faz de forma altruísta e com espírito de solidariedade e empatia. Mas muitos haverá que terão outras intenções bem menos inocentes.
Ao colocar a hipótese da detenção das crianças na fronteira, bem como as famílias que tenham menores a seu cargo durante o tempo (muito! Demasiado!) que leva a análise dos seus pedidos, é, como diz a peça publicada, um retrocesso para situações que demonstraram toda a desumanidade que pode existir em tais práticas. Juntar menores numa mesma prisão (Centro de Instalação Temporária é apenas um eufemismo para sossegar consciências) é cadilho para violações e todo o tipo de violência.
Os direitos das crianças são os que, desde o primeiro momento, são retirados. Impedidos de brincar, de frequentar a escola etc, retê-los significa uma clara violação do que há de mais elementar na construção desta Europa.
Alegam alguns países que se trata duma medida securitária pois que os jovens nestas circunstâncias crescem e tornam-se adultos mais cedo, podendo representar um perigo.
É a mais descarada forma de intolerância e falta de humanismo que existe!
Não lhes permitimos ser crianças nos seus países (sim, porque não existem virgens impolutas nestes 27 no que à guerra um pouco por todo o mundo diz respeito) e negamos-lhe a sua condição como tais, por medo!
Sim, um jovem de 16 anos é, muitas vezes, já um adulto com responsabilidades. Mas não lhe neguemos o que aceitámos como válido. O direito a ter um projeto de vida orientado e seguro.
“Este não é o pacto que gostaríamos”, afirmou a nossa secretária de Estado para as Migrações. Devemos secundá-la e denunciar o Pacto pelo que é: um retrocesso e uma cedência à direita que grassa na Europa.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.