Cada vez mais frequentemente recorro aos media audiovisuais estrangeiros para obter informação. Não obstante o “bombardeamento de imagens”, comentários, reflexões, enviados especiais, as nossas TVs continuam a insistir na velha receita da “prata da casa” a quem, por muito esclarecida que esteja, falta “lastro”, experiência geopolítica que transcenda os manuais.
A TV5 e o Le Monde transmitiram uma entrevista com o ex-conselheiro dos secretários-gerais da ONU Kofi Annan e Ban Ki-moon, o diplomata libanês Ghassan Salamé.
Para além da análise dos últimos acontecimentos entre Israel e a Palestina, Ghassan Salamé, que foi também o enviado especial das Nações Unidas na Líbia e o grande obreiro da cimeira de Beirute em 2002, que tinha como objetivo relançar os acordos de Oslo, pôs a tónica no que realmente importa: o que vai acontecer no rescaldo desta nova guerra na região.
Relembrando que o povo palestiniano, cerca de 10 milhões, se encontra disperso por quatro grandes regiões – Israel, Gaza, Cisjordânia e diáspora – traçou uma resenha da história dos últimos anos de confronto entre Israel e a Palestina, recuando ao nascimento do movimento do Hamas aquando da primeira Intifada, em 1987.
Desde então até ao momento, assistimos a uma segunda Intifada, em 2000, já após os acordos de Oslo de 1993, à formação dum governo palestiniano com Ismail Haniyeh, após a obtenção pelo Hamas de 56% dos assentos parlamentares no conselho em 2006 e a um intermitente conflito entre 2009 e 2022 com o Hamas a ganhar estrutura sobretudo através do apoio militar do Irão que fornece armas e treino e do Qatar com apoio económico.
Feita a distinção, já por todos assumida, entre o Hamas e o povo palestiniano, o diplomata foi questionado sobre se esta crise não colocaria em questão a causa palestiniana.
Ghassan Salamé foi peremptório: mesmo que se consiga acabar com o grupo do Hamas, não será possível acabar com o conflito, porquanto a grande questão sobre a existência dum estado palestiniano continuará vigente. O que eventualmente poderá suceder será o aparecimento dum outro movimento de contestação e de resistência, quiçá ainda mais duro.
Com efeito, estamos a falar dum direito consignado por tratados e por acordos internacionais, que reconhecem o estado de Israel, mas também dum estado palestiniano. O que acontece neste momento é a existência duma enorme prisão a céu aberto, onde a média das pessoas vive com cerca de dois dólares por dia e depende completamente de Israel, que não esconde a sua vontade em terminar com os palestinianos naquela região, empurrando-os para uma situação de refugiados nos países vizinhos.
Acontece que nem o Egito nem a Jordânia aceitam essa situação. O que é compreensível. Qual o país que aceita de bom grado e de braços abertos um contingente de dois milhões de refugiados? Em que condições? Durante quanto tempo?
Sem ainda a certeza do que, de facto, aconteceu na noite de 17 de outubro, com o ataque hediondo ao hospital em Gaza, o conflito vai perdendo legitimidade sobretudo por parte do país sitiante, à medida que se arrasta colocando a questão clara do day after
As soluções provisórias tendem a tornar-se definitivas. Que o digam o Líbano e outros países em redor que, desde há décadas, têm no seu território um contingente de um elevado número de palestinianos que – note-se! – albergam um único desejo altamente legitimo e já ratificado pela comunidade internacional: criar um Estado seu.
Sem ainda a certeza do que, de facto, aconteceu na noite de 17 de outubro, com o ataque hediondo ao hospital em Gaza, o conflito vai perdendo legitimidade sobretudo por parte do país sitiante, à medida que se arrasta colocando a questão clara do day after.
Irá Israel tomar o governo de Gaza? Irá negociar a troca de prisioneiros?
Em bom rigor, e caso o faça, estará a legitimar o poder do Hamas enquanto representante do povo palestiniano o que dará mais força a um movimento terrorista.
A entrevista focou-se, por fim, nas consequências regionais e internacionais do conflito, com o diplomata a considerar pouco provável a intervenção direta do Irão ou do Hezbollah, muito à semelhança do que se passou em outros conflitos.
Quanto às consequências internacionais, saudou a posição norte-americana e da ONU, que vieram apelar para um respeito total pelo Direito Internacional e pela Convenção de Genebra, muito embora os EUA, numa primeira fase, tenham tido uma posição bastante pró-israelita, tendo emendado a mão muito por pressão da opinião pública internacional que vê neste conflito culpas de parte a parte, começando a exigir uma solução diplomática e perene para um conflito que se arrasta há demasiado tempo.
Terminou com a constatação do mais óbvio, mas que nem sempre entra no senso comum: as guerras atuais infligem mais baixas civis do que militares.
A autoridade deste homem na análise do que se passa no Médio Oriente em geral e na Faixa de Gaza em particular ficou patente na segurança e equidistância das suas posições, sempre referindo que Israel tem o direito a defender-se do ataque hediondo de que foi alvo, que nada justifica o massacre de inocentes, mas enfatizando que tal é válido para um e outro lado.
Interessante e importante para os europeus é o que resulta do que não foi dito explicitamente.
A Europa não tem uma política externa comum e a sua posição é cada vez mais despicienda no palco internacional. A precipitação da srª Van der Leyen, que já tinha demonstrado no conflito da Ucrânia, revela uma fragilidade interventiva tal que toca as raias da indigência política.
Aliás, estou em crer que, com as posições tomadas nos dois conflitos, a presidente da Comissão Europeia dificilmente conseguirá um novo mandato.
A vaga de refugiados que esta guerra acarretará terá consequências inevitáveis na União, já a braços com um aumento de fluxos irregulares oriundos do Líbano o que, por si, só deveria merecer uma posição equidistante em relação aos acontecimentos em causa.
No final o que está sempre, sempre em causa é a população inocente utilizada como peões para o jogo de xadrez da hegemonia política, económica e territorial de senhores da guerra.
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