Foi com imensa estupefação que tomei conhecimento da apresentação dum projeto para a Agência Portuguesa de Migração, com a chancela do PSD.
Naturalmente envidei os esforços para conseguir o texto e analisá-lo, sendo que a temática, como é sabido, me interessa particularmente.
Tirando uma grande parte do preâmbulo que me soou a dejá lu (mas deve ser da idade; eu até tinha pensado que o partido em questão estava contra, vejam lá!), o documento não chega sequer, no meu modesto entender, a ser uma proposta de trabalho, quanto mais um projeto-Lei, como afirma.
Mesmo que se reduza à categoria de base de trabalho ou ponto de partida para uma política de imigração, preocupa-me de sobremaneira.
O documento defende, sem nenhum pudor, aquilo que denomina de Programa Nacional de Atração, Acolhimento e Integração de Imigrantes dirigido à atração e retenção de talentos.
Trata-se, pois, dum programa sectário, para imigrantes de primeira classe, indo em completo contraciclo em relação, quer ao Pacto das Nações Unidas para a Migração, quer ao novo Pacto Europeu de Migração e Asilo.
Aliás, as raríssimas e vagas referências às questões sobre o asilo ou em relação a refugiados, denota uma linha de pensamento e de atuação que, num mundo que enfrenta a cada dia que passa maiores vagas de mobilidade forçada, me faz temer a construção de muros a rodear a Costa Vicentina e o Algarve.
Não existindo uma clarificação sobre o que o partido proponente entende por “talentos”, pergunto-me o que terá acontecido ao temor securitário que pautou o discurso durante tanto tempo. É que há talentos e talentos…
O aparecimento deste documento entristece-me e preocupa-me por outras razões: primeiro, porque as narrativas e os discursos anti-imigração vão aos poucos crescendo no nosso país, sobretudo na faixa dos jovens adultos. Basta falar com os alunos do ensino superior para ver quantos aderem já a um certo repúdio e a um discurso demagógico sobre “deve e haver” relativamente ao apoio social a estas pessoas. Por muitos números que se lhes mostre, por muitas estatísticas e dados incontornáveis, a narrativa populista de mesa de café faz mais eco que a verdade nua e crua das evidências.
Não existindo uma clarificação sobre o que o partido proponente entende por “talentos”, pergunto-me o que terá acontecido ao temor securitário que pautou o discurso durante tanto tempo. É que há talentos e talentos…
Entristece-me também que não haja ainda uma proposta vinda duma outra perspectiva mais humanista, mais alinhada com o momento mundial e com as políticas de integração e acolhimento que levaram, por exemplo a Agência Europeia de Asilo (a ex. EASO) a declarar o direito imediato ao estatuto de refugiada toda a mulher afegã que consiga sair do seu país.
Esta foi a atitude mais impactante em termos de proteção da vulnerabilidade feminina desde que os talibãs tomaram o poder e passou praticamente despercebida.
Mas, felizmente, houve quem estivesse atento e com poder suficiente para enquadrar esta situação desumana numa medida de proteção internacional.
Com efeito, se pensarmos que, ao ser negada, quer às mulheres afegãs quer iranianas, o acesso ao ensino superior, estão a impedir a formação de profissionais femininas de saúde, estamos a condenar à morte, por falta de assistência centenas, milhares de mulheres que não podem ser consultadas por homens, entendemos a profundidade e a adequação da medida tomada pela agência europeia relativamente a este fenómeno.
Pergunto-me qual seria a posição duma agência portuguesa baseada naquele… documento.
A maioria das mulheres que fogem aos regimes islâmicos e misóginos têm um único talento: são mulheres, podem ser mães, educadoras, integradoras, formadoras de novas gerações, são o pilar das sociedades.
No entanto, desconheço se esses serão talentos suficientes para o tal Programa Nacional que o PSD propôs.
O que fica daquele… documento é a sensação de que os países em geral e Portugal em particular deverão poder escolher com base nas habilitações, nas competências, os que acolhe. Ou seja, o factor securitário, bramado aos sete ventos durante tanto tempo, não é escrutinado e muito menos factor de exclusão, para quem possui um talento.
Curiosamente, para mim que não sei mudar um fusível, fazer uma bomba, nem que seja de Carnaval, já é um enorme talento. Estará incluído no tal programa de atração?
Lamento que não tenha ainda havido espaço temporal para contrapor com algo fundamentado, seguro e sobretudo integrador e não discriminatório, por parte dum sector que tem no seu ADN uma formatação bem mais humanista.
O tempo urge e eles, os populistas, os que apontam o dedo, por vezes com razões para tal, mas sem soluções andam por aí. Não percamos tempo!
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
