Justo entre as Nações, finalmente reconhecido com as honras que lhe são mais do que devidas, Aristides de Sousa Mendes pagou caro a sua desobediência, a sua capacidade de pensar fora do espartilho das leis, com o espírito de humanismo que lhe mereceu, certamente, um lugar no olimpo algures no universo e o estigmatismo dos homens da sua época.
É fácil atribuírem-se honras, discursos, lápides alusivas… difícil é seguir-se o exemplo. Essa, sim, seria a grande homenagem que lhe poderíamos fazer.
Felizmente alguns, poucos é certo (e aqui uso o masculino, na perspetiva de sintaxe), vão levantando as questões, em que a lei é colocada perante a urgência dum mundo que muda e que não se compadece com espartilhos legais.
A recente crise afegã, da qual ainda não começámos a sentir nem um décimo das consequências, veio colocar questões muito concretas relativamente à aplicação da Lei e desafiar os países a cumprirem o Novo Pacto Europeu para as Migrações que assinaram, mas que, aparentemente, se mantém como letra, não morta, mas… caladinha, sem ondas.
As mulheres são as primeiras vítimas de todas as crises, de todas as guerras.
Perante esta realidade incontornável, um grupo de parlamentares colocou a questão, mais que pertinente de saber de que forma se poderia, à luz quer do Novo Pacto quer da Convenção da Aplicação do Acordo Schengen, proteger as mulheres em situação de poligamia, sendo que esta é uma forma legal de convivência marital nos seus países.
O que é que acontece às segundas, terceiras e até quartas mulheres que não podem apelar à figura de reagrupamento familiar, uma vez que a Europa tem (e deverá continuar a ter naturalmente) uma estrutura familiar monogâmica?
Em palavras simples: o que é que acontece às segundas, terceiras e até quartas mulheres que não podem apelar à figura de reagrupamento familiar, uma vez que a Europa tem (e deverá continuar a ter naturalmente) uma estrutura familiar monogâmica?
Deixá-las à sua sorte, numa sociedade onde toda a vida social e prática só é possível com o acompanhamento duma figura masculina, é condená-las, não apenas ao estigmatismo, mas em última análise à morte. Sim, porque uma mulher sem acompanhante masculino familiar direto não pode sair para fazer compras, ir à farmácia, abastecer-se de água, que lhe resta?
Argumentar que tal seria abrir a porta para um sistema de poligamia é uma falácia que só pode ser atribuída a má fé ou ignorância.
A aplicação dum Visto Humanitário não alteraria em nada o Direito da Família em nenhum dos seus direitos, deveres ou proteção.
Não sejamos hipócritas ao ponto de dizer que somos todos monogâmicos na verdadeira e ampla acessão da palavra!!!
O mais absurdo da aplicação cega da Lei (que, naturalmente, à data em que foi elaborada não podia antecipar estas situações) é que, para todos os efeitos, os filhos destas mulheres, sendo filhos dum detentor de Proteção Internacional ou Autorização de Residência, podem recorrer ao reagrupamento, protelando a mesma hipótese para o momento em que, já detentores do direito, possam “chamar” as mães. Até lá…. até lá o vazio e o tempo que escorre, inexoravelmente, em direção à morte.
No entanto, se lermos com atenção , o Novo Pacto Europeu para as Migrações fala de um Visto Humanitário a ser aplicado em casos extremos. Porém falta a coragem para a sua aplicação. É até caso para um certo silêncio, como se não existisse.
Mas nem sequer precisaríamos (e quando falo no plural refiro-me a toda a União Europeia) de dar o primeiro passo e implementar tal figura jurídica ainda bastante recente. Bastava a aplicação da Diretiva de Proteção Temporária, que existe desde 2001 e que (mais uma vez) nunca foi aplicada!
Ou seja, as leis existem, estão feitas, são aprovadas, assinadas, mas depois não há quem as aplique, quem tenha a coragem para agir, para dizer: faça-se!
Mas há responsáveis pela sua aplicação. Há quem tenha esse dever, essa competência, que tenha jurado fazê-lo. Onde estão?
Não é uma questão de low profile. É uma questão de não erguer a voz, de não dizer de sua justiça, de não ter uma palavra no momento conturbado que vivemos, de bater na mesa se preciso for, de não temer ir contra o sistema.
Em súmula, de fazer o que lhe compete. E, tal como dizia o Justo entre as Nações, este é um Mundo onde se tem que ser louco para fazer o que é preciso.
E preferir estar com as pessoas contra a Lei do que com a Lei contra as pessoas.
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