Não conheci Eduardo Lourenço.
Dele apenas lhe li os escritos (não todos) e assisti a algumas intervenções, quer na televisão, quer na rádio.
Guardo, como todos, a mesma imagem de livre e profundo pensador, homem de uma acutilante inteligência e de um discurso desarmante.
Quem eu conheci, embora durante pouco tempo, pois que não foi tão longevo como o irmão, foi o sr. Manuel Lourenço, mais conhecido por Ti Manuel da Amália, homem muito considerado em Vilar Formoso, que dista “uma pedrada”, da minha aldeia.
Tal como São Pedro do Rio Seco, de onde eram ambos naturais, a minha aldeia, Nave de Haver, fica encavalitada entre Espanha e Portugal.
Para os habitantes duma e doutra, a fronteira foi sempre uma linha imaginária definida por senhores de Lisboa, que desconhecem a rebeldia da Natureza, que não segue leis humanas.
O Ti Manuel da Amália era, pois, irmão deste grande pensador cuja perda Portugal agora chora. E, tal como o seu célebre irmão, também ele era um homem de uma cultura fora de série, sobretudo se tivermos em conta que toda a vida viveu naquela terra infértil de barrancos, que é a raia da Beira Alta.
Comerciante abastado, conhecia pelo nome praticamente todos os que passavam no seu estabelecimento e, não raras vezes, “enganava-se” nas contas por saber que a fome era grande e as bolsas pequenas e vazias.
Visitava a minha aldeia nos dias de festa e não perdia um encerro de touros pelas ruas.
Homem discreto, de pouco falar, mas com uns olhos que tudo viam.
O Ti Manuel da Amália era, pois, irmão deste grande pensador cuja perda Portugal agora chora. E, tal como o seu célebre irmão, também ele era um homem de uma cultura fora de série, sobretudo se tivermos em conta que toda a vida viveu naquela terra infértil de barrancos, que é a raia da Beira Alta
Lembro-me que tratava por tu o meu pai e eu, pequenina, ficava a ouvi-los falar de caça e de outras coisas que não entendia bem. Do que não me esqueço é dos olhos: grandes, límpidos e… com um tudo ou nada de tristeza, quiça pela miséria que via em seu redor e à qual não conseguia acudir. Pelo menos, não a toda…
Corriam os anos sessenta e o Portugal descalço e cinzento de então perdia a sua juventude para a Guera Colonial e para a emigração “a salto” para França.
Em cada família sem posses havia pelo menos um contrabandista, um guarda fiscal e um “passador”. Hoje chamar-lhe-íamos “auxiliadores de migração ilegal”. Na altura (como em certos casos ainda agora, pelo menos quando não passam a traficantes humanos, que é uma outra história) eram homens e mulheres a quem os que atravessavam a fronteira de Portugal para Espanha e desta para França, ficavam eternamente agradecidos.
Alguns, sobretudo os que fugiam ao jugo de Salazar e dos seus cães de fila da PIDE que vigiavam a fronteira, tinham que ficar dias à espera do momento certo para fazer a travessia.
Nem mesmo Vilar Formoso, que era a vila mais abastada e desenvolvida daquela região (embora a eletricidade tenha chegado já bem dentro da década de sessenta), possuía hotel ou albergaria.
Estes foragidos ficavam em casas de almas piedosas, a maior parte delas desconhecendo sequer a palavra política, mas todas sabendo bem o que era o medo, a miséria, o frio e a fome.
Dizem-me que o Ti Manuel da Amália era um dos que albergava os jovens enquanto esperavam que os “passassem”, por entre o restolho, as giestas e os pedregulhos, para a liberdade. Não me admiraria se assim tivesse sido.
O meu pai, como militar que será sempre, faz um sorriso quando lhe pergunto e só me diz: “Era um homem bom.”
Tal como o seu irmão Eduardo, que nunca perdeu o olhar, um pouco duro é certo, mas límpido das gentes raianas. E, tal como elas, nunca se vergou perante as adversidades da vida. E, também como elas, nunca quis ser outra coisa que não português.
Irmãos forjados na dureza duma terra de ninguém. Sem dúvida privilegiados num chão de pés descalços. Mas que nunca esqueceram quem eram.
Hoje, a minha memória vai para todos os Manuéis Lourenços que viveram e morreram no anonimato, mas que jamais perecerão nas recordações daqueles de quem quiseram sempre ser irmãos de destino.