Aí está um substantivo que nunca deixou de ser misterioso para mim. Como defini-lo rigorosamente? A alma, substantivo feminino. Se estivermos desapossados de um sentido religioso da vida torna-se ainda mais difícil. A nível simbólico, sim, pode ser muito útil e até fácil de utilizar (lembro-me dos Da Weasel: “Como é que lhe dás? Dou-lhe com a alma!”). E todos temos na cabeça, mesmo que num recôndito recanto, aquela imagem clássica, basilar na nossa cultura e civilização: o corpo inerte e a alma (quase sempre representada como uma versão transparente, meio virtual, desse corpo) a elevar-se no ar deixando a inútil matéria morta para trás.
Na quinta-feira passada, ao princípio da noite, senti que fiquei a saber um bocadinho melhor o que é isso da alma. Foi quando vi o incomparável sorriso do Zé Pedro a pairar, para todos, no Pavilhão Atlântico (eu sei que já não se chama assim). Estávamos numa bela homenagem feita pelo festival Super Bock Super Rock ao guitarrista dos Xutos & Pontapés que morreu em novembro do ano passado, com 61 anos. O baterista, e figura hiperativa da música portuguesa, Fred Ferreira, filho de Kalu, dos Xutos, organizou a coisa. Passaram por lá Tó Trips, Rui Reininho, Carlão, Manuela Azevedo, Manel Cruz, Paulo Gonzo, Jorge Palma, João Pedro Pais e muitos outros. Podiam ter sido muitos mais ainda, houvesse tempo e espaço. Fez todo o sentido que o concerto começasse com aqueles jovens músicos em palco: Sebastião e Vicente Santos, filhos de Tim, Joel Cabeleira, sobrinho de João Cabeleira, João Nascimento, filho do saxofonista Gui, Marco Nunes, sobrinho de Kalu, Fred Ferreira… Mais perto do final, com o Palma’s Gang (Flak no seu convincente papel de guitar hero!) e os Xutos (a tocarem Dados Viciados, Remar, Remar e uma apoteótica Não Sou o Único, canção com letra de Zé Pedro), percebeu-se bem que nisto do rock a idade pode ser um posto. Tudo parecia soar muito mais forte e poderoso. Mas não estávamos ali para campeonatos de virtuosismos e protagonismos – conceitos, aliás, que nada tinham a ver com o homenageado.
Lembrei-me, então, que a última vez que estive com o Zé Pedro foi precisamente ali, num corredor de saída do Atlântico, num concerto deste mesmo festival Super Bock Super Rock (Iggy Pop se não me engano…). “Estar com”, como muitas vezes, foi só um caloroso aperto de mão, uma pancada nas costas, aquele sorriso. Aquele mesmo sorriso que agora pairava, numa grande projeção atrás do palco, naquela sala gigante de concertos, entre amigos, conhecidos, desconhecidos do músico. Para todos. No rosto de muita gente – de todas as idades -, também um sorriso enquanto gritavam “Não, não sou o único!”.
Quando foi o funeral do Zé Pedro não estava em Lisboa. Faltei. Ali, nesta quinta-feira, senti que fiz a minha despedida. A cantar, a beber, a sorrir entre amigos. E aquela coisa da alma…
A alma do Zé Pedro estava ali. O corpo não. A memória daquela vida e sorriso vai perdurar em muita gente por muitos e muitos anos. Uma presença que iluminava quem o conhecia, de perto ou de longe – e pode iluminar ainda, mas de outra maneira.
Talvez seja (só) isto a vida depois da morte. Já não é nada mau.