Quando era menino, o meu pai tinha um colega que fazia todos os dias duas horas a pé descalço para ir à escola primária, no concelho de Oeiras. Chegava exausto, solas dos pés calejadas como couro. Muitas vezes, ia de madrugada ajudar a descarregar os barcos dos pescadores, para ganhar uns trocos para ajudar a família. Era gozado pelos bullies da época porque “cheirava a peixe”. Aquele esforço impressionou muitíssimo o meu pai – tinha já a consciência de que era muito maior do que o que ele, privilegiado, tinha de fazer para estudar. Perderam-se de vista, mas décadas mais tarde, já homens feitos, ele veio visitá-lo. E foi com enorme emoção que o viu feliz e “bem na vida”. Trabalhou, emigrou, montou o seu negócio, progrediu socialmente, e deu aos seus filhos muito mais do que os seus pais tinham conseguido dar-lhe: um nível de vida confortável e condições para estudar.
Deve ser esta a função primordial da escola pública: servir de elevador social. E, assim, através da educação, corrigir desigualdades sociais e criar uma sociedade mais justa. O problema é quando o elevador encrava. Vivemos, parece-me, um desses momentos, e quando é mais importante que ele funcione.
Comecemos pelo início. Portugal continua a ser um dos países mais desiguais da Europa. É o quinto país da União Europeia onde a desigualdade é maior, com um coeficiente de Gini (indicador de desigualdade na distribuição do rendimento) de 32%, tendo subido três lugares no ranking fruto do impacto da pandemia.
A pobreza é um tema de família, ou seja, há quem a herde. Não vem incrustada nos genes nem é uma fatalidade, mas quase, porque romper o ciclo de carência é extremamente difícil. Os dados da OCDE apontam para que sejam necessárias cinco gerações até que crianças nascidas em famílias na parte inferior da distribuição de rendimento consigam escalar até à parte média. A ascensão social entre gerações é difícil, mas o topo da hierarquia conserva-se lá em cima: 39% das crianças cujos pais têm rendimentos elevados crescem para ter rendimentos elevados. O chão e o teto desta estrutura são pegajosos: quem está em baixo e em cima tem mais dificuldade em descolar.
O acesso a educação pública de boa qualidade, tanto ao nível do ensino básico e secundário como superior, só por si não garante sucesso individual, mas ajuda muito. Vivemos, no entanto, tempos desafiantes: a pandemia da Covid-19 teve um impacto desproporcionalmente negativo nas crianças e nos adolescentes provenientes de meios socioeconómicos mais desfavorecidos, naqueles que enfrentaram encerramentos prolongados das escolas e naqueles que carecem de estruturas de apoio essenciais, como família e professores, dizem estudos recentes da OMS/Europa, confirmando outros feitos por cá.
Depois da pandemia, vieram a guerra, a inflação e a subida das taxas de juro, com uma diminuição abrupta do rendimento disponível das famílias. Isto num país onde cerca de uma em cada dez pessoas empregadas é pobre. Portugal é, segundo os últimos dados, o oitavo país da União Europeia com maior taxa de risco de pobreza ou exclusão social, sendo as mulheres, e também pessoas com escolaridade até ao ensino básico e os desempregados (quatro em cada dez) os grupos mais vulneráveis.
O que me traz de volta à educação. É fundamental dar acesso a escola e universidade públicas, mas também condições e mecanismos de apoio para que as famílias consigam efetivamente sustentar os estudos. A gratuitidade dos manuais escolares foi um excelente avanço, mas é preciso fazer mais: distribuir computadores, internet e materiais pelos mais desfavorecidos, acabar com “escolas-gueto” mais frequentadas por crianças pobres e ajudar nas despesas de deslocação e alimentação, quando, para estudar, os jovens são obrigados a sair de casa das famílias.
Os preços dos quartos para estudantes são proibitivos para uma fatia esmagadora da população portuguesa, mesmo que ambos os pais estejam empregados. Impossível de sustentar para os ordenados médios. Isto condiciona fatalmente os jovens do Interior ou das zonas rurais, mesmo que sejam excelentes alunos, a ir trabalhar ou a escolher cursos em instituições menos prestigiadas ou de que não gostam, mas que estão mais próximo de casa. As residências universitárias acessíveis que existem não chegam – e as que vão abrir não satisfazem as necessidades. O acesso a um ensino de primeira e de segunda na escola pública, não por mérito e competência, mas por classe social, é qualquer coisa que devia, como país, preocupar-nos. Porque, cada vez mais, um país que não aposta tudo na educação e na formação da sua população está condenado a falhar.
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