Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Portugal é o maior produtor de bicicletas da União Europeia. De acordo com o Eurostat, a indústria nacional destronou Itália em 2019, alcançando o pódio da produção velocípede: 2,7 milhões de bicicletas produzidas, 400 milhões de euros em exportações num ano. A economia agradece. No entanto, se somos campeões a montar e vender, não somos tão fãs de dar ao pedal. A bicicleta tem crescido como meio de transporte, mas o seu incentivo ainda encontra, por cá, uma enorme resistência. Num momento histórico em que as cidades estão desertas, é de nos questionarmos por que haverá tanta gente contra o investimento no transporte mais barato, saudável, prático e ecológico de todos.
Declaração de interesses: é raríssimo andar de bicicleta em Lisboa. Já fiz vida a pedalar noutras cidades, mas nunca na minha, e ando bastante de carro, ou seja, acusem-me à vontade de hipocrisia. Força. Ao mesmo tempo, ninguém pode apontar-me interesses diretos na matéria, até porque o ganho é objetivamente comum. Falar de alternativas de transporte em 2020 não é um fait divers, mas uma urgência absoluta: o transporte rodoviário e a dependência dos combustíveis fósseis não são só uma ameaça à saúde e à qualidade de vida, mas ao futuro da Humanidade na Terra. Literalmente. Responder, de uma vez por todas, à urgência das alterações climáticas não é assunto para um grupo de escuteiros ou samaritanos, mas antes um gesto coletivo pela sobrevivência da espécie, que cabe a cada homo sapiens sapiens digno do segundo sapiens. E isso passa por repensar os transportes. Acordai, Homens que dormis.
Nas cidades mais desenvolvidas do globo, o caminho tem sido, progressivamente, criar alternativas viáveis ao cancro que os automóveis representam. Pelo mundo, constroem-se 83 milhões de carros novos todos os anos, prontos para entupir ruas, destruir o planeta e afundar contas bancárias. Se o automóvel individual tem vantagens e confortos evidentes, o único futuro plausível é a sua paulatina substituição por redes amplas de transportes públicos de qualidade, carros partilhados, bicicletas, novos veículos e, claro, distâncias a pé. Em Portugal, os transportes públicos são insuficientes e o percurso terá de se fazer pelo investimento forte em alternativas eficazes. Um Joaquim Agostinho em cada esquina? À partida, não será preciso tanto. Todavia, a par do investimento em transportes públicos sustentáveis, a construção de ciclovias seguras é uma excelente alternativa – em especial, para um país com a meteorologia lusitana. O coração, os pulmões e o Serviço Nacional de Saúde agradecem. Hoje, já nem as colinas lisboetas servem de desculpa, tantas são as bicicletas que ajudam nas subidas. Na Holanda, onde o clima não agracia propriamente ninguém, 75% dos alunos do ensino secundário vão para a escola de bicicleta, graças às ciclovias. Resultado? Menos poluição atmosférica, menos litros de petróleo, menos despesas, progenitores mais descansados, jovens mais saudáveis e independentes.
Nas cidades lusas, o carro continua a ser um meio fundamental para milhões de pessoas. Portugal é, aliás, o segundo país da UE onde mais se anda de carro, ficando apenas atrás da Lituânia. O resultado é absurdo: há famílias de cinco pessoas com cinco carros. A indústria e o consumo estão a esgotar o planeta, para além de que são cinco seguros, cinco oficinas e cinco chatices. Uma família, vinte pneus na estrada. No trânsito, a maior parte dos carros leva uma única pessoa ao volante. Aqui, o progresso também passa pela partilha, pela organização e pelas boleias. E a bicicleta?
Certa tarde, seguia de bicicleta numa zona sem ciclovia e uma enchente infernal de trânsito obrigou-me a subir ao passeio, que estava vazio. Vendo-me subir, um condutor enervou-se e gritou-me da janela do seu carro engarrafado: “o passeio é para as pessoas!”, com a voz a tremer-lhe da catarse. Calmamente, parei e informei-o de que eu era uma pessoa. “Eu sou uma pessoa”. O ilustre piloto bloqueou com a revelação. Segui, já não ouvi o que ele disse quando recuperou, mas não deve ter sido bonito. E este episódio conduz-nos a um fenómeno sensível: provavelmente, quem já pedalou numa cidade sentiu, pelo menos uma vez, sinais de uma raiva desmesurada dos automobilistas. Mas porque será que isso acontece?
Em primeiro lugar, o óbvio. Por mais excelentes que as pessoas sejam, o exaspero de um engarrafamento tira qualquer um do sério. Nesses casos, sou levado a crer que o condutor entalado no trânsito tende a irritar-se com maior facilidade ao vislumbre de uma pessoa que pedala alegremente, livre, quase insolente, raio do homenzinho, enquanto escapa ao trânsito na sua bicicleta colorida. É irritante. É irritante lidar com a liberdade dos outros na clausura do engarrafamento como é irritante ver um casal muito feliz, aos abracinhos na rua, quando a nossa vida amorosa está na penúria. É humano.
Depois, há uma óbvia embirração estética. Para o automobilista fumador, enfiado num carro barulhento e com a inspeção em falta, é enervante avistar bandos de ciclistas nas suas licras fluorescentes, o capacete impecavelmente ajustado e os óculos de sol aerodinâmicos. É uma visão demasiado saudável, demasiado responsável para quem circula num chaço a precisar de ir trocar as pastilhas. Por fim, há a justa causa: a falta de civismo de alguns ciclistas, pela qual pagam todos. Pedalar é, obviamente, mais exigente para o físico, e isso tanto faz com que os ciclistas não respeitem regras de trânsito, ou as respeitem demais, empatando a vida a toda a gente. Tudo isto se resolve se cada veículo tiver o seu espaço e as suas regras, adaptadas às suas características. Portanto lembre-se disso, caro automobilista. Se embirra com ciclistas, mais um motivo para apoiar as ciclovias. Para além disso, as vias retiram carros da estrada, dando oportunidade às pessoas de os deixarem em casa. Já está a acontecer.
Como é óbvio, o planeamento é complexo. Transformar o trânsito implica estudar, caso a caso, o impacto das ciclovias nos fluxos, em especial quando isso envolve cortar faixas rodoviárias. Os técnicos são, à partida, pagos para fazer esse trabalho e todas as partes interessadas devem ser ouvidas – moradores, utilizadores, associações, comércio -, quando o assunto é alterar as dinâmicas dos bairros, para prevenir medidas disparatadas. Esta é uma questão-chave. Curiosamente, as bicicletas são um tema quente – basta espreitar a secção de comentários do Facebook da Câmara Municipal de Lisboa -, pela avalanche de perspectivas, opiniões e frustrações pessoais que um tema tão fundamental como os transportes suscita, naturalmente.
O futuro é das cidades mais sustentáveis. Criar sistemas equilibrados para a sociedade, a economia e o ambiente não é uma hipótese. É uma obrigatoriedade. Se estamos a milhas do ideal, aproveitemos o sedentarismo forçado da pandemia para idealizar e agir.
Já começa a ser tempo de dar aos pedais.