Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Agosto é o mês oficial do marasmo. Farto em festas no campo e geleiras na praia, o mês favorito dos portugueses para meter férias é por hábito um período em que acontece pouco, um tempo gelatinoso. Em 2020, álcool-gelatinoso. A “silly season” (estação tontinha) – como os ingleses chamam às férias de Verão desde que o seu parlamento, no século XIX, fechava para descanso e o fervor da política se suspendia – é, por cá, a época dos chinelos e das sandálias. E máscara, neste caso. O descanso é importantíssimo para as famílias, mas o país pára. Com os políticos retirados do hemicírculo para banhos fugazes, as instituições de férias e os serviços a meio gás, as notícias são poucas, levando cronistas a poisar a caneta. Este ano é o cúmulo, sem cultura e com pouca boémia. Não há programas de comentário porque não há nada para comentar. Nos jornais, desenterram-se reportagens antigas, faz-se um número especial sobre o Yuri Gagarin, primeiro homem no Espaço, ficamos a saber que há várias réplicas da torre Eiffel em cidades chinesas.
É um fenómeno engraçado. Em julho, basta ver, já se ouve a deliciosa ressalva tão portuguesa que é o “olhe que isto depois mete-se agosto”, versão dilatada pelo calor do “isto depois mete-se o Natal”, ou seja: no fundo, duas expressões que alertam para um momento estendido em que ninguém poderá contar com nada. Nada – nenhuma estrutura essencial ao funcionamento da sociedade – funciona bem neste mês e isso é aceite como uma espécie de imposição divina. É melhor tratares já disso, que isto depois mete-se Agosto. Ainda não consegui responder ao email, que isto entretanto meteu-se Agosto. A improdutividade gritante da quadra em que ninguém atende telefones, ninguém cumpre prazos e ninguém se preocupa demasiado leva quem, como eu, labuta intensamente neste período a bradar aos céus. Bradar em vão, que isto entretanto meteu-se Agosto.
No que toca ao vírus, os números mantêm-se sob controlo na pequena aldeia lusitana. Resta-nos, portanto, comentar aquilo que de mais “viral” aconteceu na semana: Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente nadador-salvador, salvou duas jovens no mar do Alvor. A imagem é logo cómica. Vislumbrar Marcelo em registo “Marés Vivas”, nadando crawl, ou talvez costas, rumo ao salvamento marítimo de duas jovens incautas é uma metáfora incrível para o mês de Agosto. Vamos analisá-la.
Em primeiro lugar, o episódio deu ao Presidente aquele que é provavelmente o melhor cognome de sempre: “Marcelo, o nadador-salvador”. O nadador-salvador é, convenhamos, de fazer inveja ao Conquistador D. Afonso Henriques, ao Bravo e ao Formoso. Ao mesmo tempo, tem potencial para aventura de banda desenhada. Não admira que tenha corrido mundo: a BBC falou no episódio, assim como o Le Parisien. Ou seja: numa época em que os jornais não têm grande coisa para noticiar, Marcelo Rebelo de Sousa consegue dar à BBC material para trabalhar.
Em segundo, porque, conforme se percebe no vídeo, a ajuda de Marcelo não foi absolutamente necessária à salvação das duas jovens, onde já estava uma mota de água, e isso é duplamente engraçado. A acção é meramente simbólica, sem que isso lhe tire valor. De um lado, temos duas raparigas ao lado de uma canoa virada, do outro, um presidente hiperactivo, de 71 anos, que não resiste a uma oportunidade para se fazer útil, num período em que é tão difícil sê-lo, honrar a imagem de homem “de afectos”, num momento em que é tão difícil dá-los, remando com fé para tudo acabar numa história bem disposta.
Por último, a cobertura mediática nacional. Sem entrar em conspirações, não deixa de ser notável o facto de a SIC – que se apressou a fazer a cobertura do momento – já por perto quando o “salvamento” ocorreu. Isso é, no mínimo, o sintoma de uma comunicação social sem melhores coisas para acompanhar do que os mergulhos de um presidente viral, no máximo, mais um momento em que Marcelo adianta trabalho eleitoral sem ter, sequer, anunciado oficialmente a recandidatura à Presidência.
Provavelmente estaria pronto para anunciá-la, mas depois meteu-se agosto.