Dia 46.
Muitos destes dias, lá pela meia noite, entrego-me a uma espécie de “schadenfreude” antes de me deitar: assistir, no Twitter, aos press briefings diários de Donald Trump na Casa Branca sobre a Covid-19. São um espetáculo decadente e uma fonte interminável de choque, de assombro e de irritação.
Sabemos que Trump é desbocado e sem filtros, que distorce a verdade, que tem um discurso simplificador elementar, que repete sempre as mesmas palavras, sobretudo adjetivos e advérbios de modo amplificadores, que diz repetidamente que a nação americana é a maior e a melhor do mundo e que ele é o melhor e mais inteligente líder que alguma vez Deus pôs na Terra, que o New York Times e a CNN são a toda a hora acusados de fake news… Sabemos de cor tudo isso. Mas ver o homem, em direto, ao vivo e a cores, diariamente, é qualquer coisa de muito impressionante. É como ver um carro de bêbados a espetar-se sempre na mesma curva, todos os dias, à mesma hora.
Nunca se viu tão descarado chorrilho de absurdos e tão patético exercício de auto-massagem no ego por parte de um político. E se a história está cheia de políticos que se acham extraordinários e são despudorados o suficiente para o repetir muitas vezes em público! “We have done a great job!” é a frase mais repetida. As minhas contas, por alto, apontavam para que um terço do tempo daquelas conferências de imprensa fossem a sublinhar o excelente trabalho que está a realizar e o quão grande Presidente é.
Devo ter, ainda assim, pecado por defeito. O New York Times passou a pente fino as muitas horas das conferências de imprensa diárias na Casa Branca desde 9 de março agora – um exercício de estoicismo, sentido de missão e amor ao jornalismo. O objetivo foi analisar as mensagens e contabilizar as palavras e expressões mais recorrentes. O que encontraram? Um discurso onde a referência, de longe, mais frequente são auto-elogios. Mais precisamente, 600.
O resto é a descartar-se de culpas e a atirá-las para cima dos outros (os governadores dos estados, especialistas e responsáveis de autoridades várias, a OMS, o resto do mundo), a atacar e ameaçar os media frontalmente, dirigindo-se aos jornalistas com palavras ofensivas (o novo termo que adora é “lamestream media”), e a dizer diversificados disparates e mentiras ao povo americano. Informação e alguns factos também lá estão, mas sempre mascarados de propaganda. Basta ver a quantidade de vezes que mais repetiu que os Estados Unidos eram o País do mundo que melhor controlou a Covid-19 e responderam à pandemia quando estavam em progressão imparável, ou como repete permanentemente que os EUA testam mais do que os outros países, uma mentira absoluta durante muito tempo (só nas últimas semanas se tornou verdade) e uma mentira relativa quando se olha ao número de testes per capita, o único indicador que realmente importa. Até Portugal testa muito mais do que os EUA, que estão bem a meio da tabela nesta matéria…
Para quem acompanhava isto, o episódio da equação do desinfetante como tratamento válido para a Covid-19 – que levou a um aumento de casos de intoxicação e a um desesperado apelo por parte de milhares de médicos e autoridades para que esta hipótese não seja tentada – não veio como uma surpresa. “Just another regular day at the office”, que é como quem diz, a Casa Branca de Trump. Os muitos despautérios proferidos terão sido responsáveis pelas quedas nas sondagens e índices de confiança, o que terá levado Trump a ponderar o cancelamento do briefing diário. Que, afinal, foi apenas adiado, mas acabou por acontecer ontem novamente um pouco mais tarde.
E, claro, reaberto o palco e acesos os holofotes, o showman não desiludiu. Voltou a mentir, voltou a atacar jornalistas, voltou a ofender adversários, voltou a dar o ar da sua graça e apresentar-se detentor de informação confidencial sobre o paradeiro de Kim Jong-Un. Voltou a auto elogiar-se e a dizer que se ele não fosse presidente dos Estados Unidos estariam em guerra com a Coreia do Norte. Voltou a ser ele próprio, um inapto aos comandos.
O meu programa noturno favorito está de volta – e se calhar está aqui a causa dos meus recorrentes pesadelos cataclísticos por estes dias.