Visto à distância de quatro décadas, os acontecimentos surgem todos ligados, numa cadência quase perfeita. Em 1974, o país acordou, na manhã de 25 de abril, para a liberdade. Um ano depois, em 1975, os portugueses participaram pela primeira vez, na sua história longa de oito séculos, numas eleições livres e universais. Em 1976, Portugal passou a ter uma Constituição democrática, voltou a realizar eleições livres e, pela primeira vez na sua história, viu um atleta ganhar uma medalha olímpica, a correr num estádio.
A data está assinalada nos almanaques como o dia 26 de Julho de 1976. O cenário: Estádio Olímpico de Montreal. A prova era a final dos 10 mil metros. Apesar da corrida ser lembrada ainda hoje, com natural emoção, por todos os maiores de 50 anos, é melhor pedir socorro a uma fonte independente para a relatar. Para isso, nada melhor do que David Wallechinsky que, no seu sempre atualizado “The Complete Book of Olympics”, tem sempre a descrição correta, sóbria e exata de qualquer prova de qualquer olimpíada. Este exemplo é paradigmático. Basta ler o primeiro parágrafo: “A final foi uma corrida relativamente simples. Carlos Lopes tomou a dianteira após os primeiros 3200 metros e de forma natural livrou-se da restante concorrência, exceto de Lasse Viren, que o ultrapassou a 450 metros da meta e ganhou facilmente com 30 metros de avanço”.
É verdade. Foi exatamente isto, numa linguagem fria e enciclopédica para ficar como memória futura. Mas a verdade, também, é que esta corrida foi muito mais do que Carlos Lopes a puxar e Lasse Viren a ganhar. Esta foi a corrida em que, pela primeira vez, o atletismo português ganhou uma medalha olímpica.
“A medalha de prata de Carlos Lopes nos Jogos de Montreal fez despertar uma crença nova entre os portugueses: a de que, afinal, também podíamos ganhar”, diz Jorge Vieira, presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, ao recordar aquele momento.
Situemos as coisas como elas eram. Até aos Jogos de Montreal, Portugal tinha ganho apenas sete medalhas em Jogos Olímpicos: três em provas por equipas no hipismo, uma também por equipas na esgrima e outras três em duplas na vela. Cinco bronzes e duas pratas. Mas desde a prata dos irmãos Quina, na vela, nos Jogos de Roma, em 1960, que os portugueses não sabiam o que era ganhar uma medalha.
Em Montreal, o feitiço foi quebrado, logo na primeira semana, quando Armando Marques ganhou a prata no tiro com armas de caça – a primeira medalha ganha por um português numa prova individual. Uma semana depois, Carlos Lopes, sagrado nesse ano campeão do mundo de corta-mato, partiu para a final dos 10 000 metros, como principal oponente do campeão olímpico de Munique 1972, o finlandês Lasse Viren.
“A única mágoa que guardo dessa prova é o facto de a medalha não ter sido de ouro”, diz Jorge Vieira. “Não tenho dúvidas de que o Carlos Lopes era muito superior ao Lasse Viren, que só ganhava porque usava métodos proibidos, como as transfusões de sangue, que na época não se detetavam, e que hoje são completamente ilegais”.
“Mas o mais importante é que aquela medalha foi um pontapé na realidade em que viviamos”, acrescenta o presidente da Federação de Atletismo. “Abriu mentalidades, provou que os portugueses tinham condições para lutar de igual para igual com os outros e que também podiam ganhar medalhas”.
Quatro décadas depois desse momento histórico, Jorge Vieira faz questão de lembrar o nome daquele que considera ter sido o “autor” da medalha: “Se há pessoa a quem se deve este abrir de mentalidades é ao prof. Mário Moniz Pereira. Foi ele o primeiro a dizer que se dessem condições de treino aos portugueses eles também poderiam ser campeões. Foi ele o primeiro a recusar o sentimento de inferioridade que parecia existir no País, nesses tempos. Por isso, esta medalha tem, claramente, um autor – Mário Moniz Pereira – e um ator – Carlos Lopes”.
Desde essa medalha fundadora de 1976, o atletismo português ganhou mais nove em Jogos Olímpicos, incluindo as únicas quatro de ouro do desporto português: Carlos Lopes (1984), Rosa Mota (1988), Fernanda Ribeiro (1996) e Nélson Évora (2008). No balanço final incluem-se ainda mais uma de prata de Francis Obikwelu (2004) e outras quatro de bronze: António Leitão (1984), Rosa Mota (1984), Fernanda Ribeiro (2000) e Rui Silva (2004).