Os brasileiros andam divididos, nas ruas, entre o repúdio e o apoio à presidente Dilma Rousseff. As posições estão extremadas, a clivagem aumenta todos os dias, ouvem-se apelos à violência, cresce a intolerância e pronunciam-se, com cada vez mais insistência, declarações de guerra, exigindo a capitulação dos adversários, sem condições. Perante tudo isto, será que existe alguma maneira, nem que seja momentaneamente, de unir um país nestas condições? A resposta é muito difícil, para não dizer mesmo impossível. Mas há, apesar de tudo, uma pequena réstia de esperança: a tocha olímpica está quase, quase, a chegar ao Brasil e ela pode fazer um milagre, uma vez que simboliza, de forma agora quase universal, os valores da paz, união e amizade entre os povos.
Mas nem sempre pelas melhores razões…
‘Revezamento’ da unidade
A tocha vai ser acesa no próximo dia 21 de abril, na antiga cidade grega de Olímpia, palco dos Jogos da Antiguidade. Após ser transportada, a pé, por vários locais da Grécia, será entregue, formalmente, seis dias depois, aos organizadores dos Jogos do Rio, no mítico estádio Panathinaiko, onde se realizaram os primeiros Jogos da era moderna, em 1896.
Depois, a 3 de maio, a partir de Brasília, os que estão contra e a favor do governo do PT podem começar a encontrar-se nas ruas, unidos por um mesmo objetivo: saudar a passagem, no seu bairro ou aldeia, da estafeta da tocha olímpica, a caminho do seu destino final, o Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, a 5 de agosto.
É isso, pelo menos, que esperam os organizadores dos primeiros Jogos Olímpicos realizados na América do Sul, que delinearam um percurso de 20 mil quilómetros, que passará por mais de 300 cidades, em quase 100 dias, dando possibilidade, segundo dizem, a que a chama seja vista por cerca de 90% da população do país, num “revezamento” (estafeta para nós) que terá a participação de milhares de pessoas
Quando saírem para as ruas a aplaudir os homens e mulheres que transportam a tocha, numa estafeta que já faz parte da história das olimpíadas, os brasileiros – tal como já sucedeu noutros países… – podem pensar que estão a participar numa tradição milenar, com origem na mitológica Grécia Antiga. Puro engano: a tocha olímpica foi inventada pelos organizadores dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, na Alemanha nazi.
A ironia é, neste caso, quase cruel: um dos maiores criminosos da História da Humanidade teve, afinal, um papel decisivo para a criação de um dos mais reconhecidos símbolos da paz e da irmandade entre os povos.
Alemães ‘bons’ e alemães ‘maus’
Claro que tudo tem uma explicação. E se é verdade que os Jogos de 1936, em Berlim, foram transformados numa intensa manobra de propaganda do nazismo, também é preciso sublinhar que, quando Hitler chegou ao poder, a sua realização ficou seriamente comprometida, já que ele considerava o movimento olímpico “uma invenção dos judeus e da maçonaria” e achava, portanto, impossível a sua organização “num Reich dominado pelos nacional-socialistas”.
Dois homens foram decisivos para o convencer a mudar de opinião: Theodor Lewald e Carl Diem, principais figuras do comité organizador e, curiosamente, ambos com ligações familiares “suspeitas” para os nazis, já que tinham antepassados judeus. Mas o que os unia, sobretudo, era o sonho de organizar os Jogos Olímpicos na Alemanha, objetivo que perseguiam há décadas, sem sucesso.
Lewald e Diem tinham sido já os líderes do comité organizador dos Jogos de 1916 que, quatro anos antes, haviam sido atribuídos a Berlim. A sua capacidade de organização e dinamismo ficou patente, desde o início: fizeram construir, em tempo recorde, um grandioso estádio nos arredores da capital alemã e, mesmo depois do eclodir da I Guerra Mundial, em 1914, prosseguiram os seus esforços para a realização dos Jogos, como se a Europa não estivesse transformada num imenso campo de batalhas, dividida em trincheiras sangrentas. Só em abril de 1915, aliás, é que os Jogos foram definitivamente cancelados, após se descobrir que os alemães tinham começado a usar gás venenoso como arma de combate, no que foram rapidamente imitados pelas forças aliadas – ato que o barão Pierre de Coubertin classificou como o “fim do cavalheirismo” na guerra e, como tal, justificação para cancelar os Jogos programados para Berlim, no ano seguinte.
Olímpicos em época de crise económica
A derrota germânica na Guerra teve, naturalmente, consequências para o sonho de Lewald e Diem, já que a Alemanha foi afastada do movimento olímpico e impedida de participar nos Jogos de 1920 e 1924. O regresso, nos Jogos de 1928, em Amesterdão, foi, no entanto, triunfal, com os alemães a classificarem-se em segundo lugar na tabela total de medalhas, logo a seguir aos Estados Unidos. Lewald e Diem tinham o argumento que procuravam: a Alemanha voltava a ser uma potência olímpica e, como tal, estava na hora de poder, finalmente, levar os Jogos para Berlim.
O lóbi dos dois homens foi intenso e bem sucedido. Após um processo de votação que se prolongou por várias semanas – alguns membros do Comité Olímpico Internacional votavam por correspondência… – Berlim foi eleita, em maio de 1931, para sede dos Jogos de 1936 (derrotando Barcelona). E, no ano seguinte, Lewald e Diem foram observadores atentos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, onde tiraram notas e fotografaram tudo o que puderam para perceber como um país mergulhado na Grande Depressão conseguia assegurar, com brilhantismo, a organização dos Olímpicos.
Numa Alemanha também minada pela crise económica e que contava, na altura, com mais de quatro milhões de desempregados, Lewald e Diem delinearam um plano ambicioso, mas com um orçamento contido e quase sem custos para os cofres do Estado: a despesa da construção das instalações desportivas, da aldeia olímpica e da ampliação do estádio olímpico seria compensada, inteiramente, com a venda de bilhetes, com uma emissão especial de uma série de selos e com a realização de uma lotaria, durante três anos.
O plano foi discutido e aprovado pelo comité organizador, logo na sua primeira reunião formal, a 24 de janeiro, realizada na câmara de Berlim. Seis dias depois, no entanto, toda a realidade da Alemanha foi alterada, com a chegada de Hitler ao poder, acompanhado da sua retórica anti olimpismo e a recusa em aceitar que os atletas germânicos pudessem competir, num mesmo estádio, com negros ou judeus.
A melhor propaganda de sempre?
De repente, o sonho de levar os Jogos para Berlim estava novamente em risco. Mas os dois homens não queriam desistir nem perder tempo. Apenas cinco dias depois do novo governo nazi tomar posse, Theodor Lewald, com seus astutos 73 anos e embora olhado como “meio-judeu”, conseguiu ser recebido por Joseph Goebbels, o poderoso ministro da Propaganda e homem da máxima confiança de Hitler. E convenceu-o que se os nazis quisessem abraçar o projeto tinham à sua frente à mais fantástica oportunidade para mostrar ao mundo a excelência da Alemanha. Inteligente, Goebbels percebeu rapidamente a mensagem e não demorou muito para convencer Hitler a mudar de opinião e a dar o seu aval à organização dos Jogos.
Mas não só: se era para ser propaganda, então seria a melhor, mais cara e ambiciosa propaganda que o mundo jamais tinha visto. O orçamento, que era para ser contido e pago quase integralmente pelas receitas de bilheteira, foi multiplicado por vinte, com o governo alemão a subsidiar a maior parte do investimento. Novas instalações desportivas começaram a ser planeadas e até uma linha de metropolitano foi construída para ligar o centro de Berlim ao parque olímpico. Sempre com um objetivo central: glorificar as virtudes da Alemanha renascida e celebrar a superioridade ariana que, segundo os seus ideólogos, tinha origem nos grandes feitos da Grécia Antiga, de quem se reclamavam descendentes diretos.
Ideia executada pelo melhor da indústria germânica
Foi nesse contexto que Carl Diem teve a ideia de criar um acontecimento que pudesse unir, de uma forma simbólica e inspiradora, os ideais da civilização grega com a nova realidade da Alemanha (numa altura em que o Comité Olímpico Internacional tinha já entregue quase totalmente o controlo da organização aos nazis, com o barão Pierre de Coubertin “confortado” com uma generosa doação em dinheiro). A sua “invenção” passou a ser, desde então, uma das tradições mais aclamadas e simbólicas do movimento olímpico: encenar uma cerimónia, nas ruínas de Olímpia, para acender a chama que, depois, é transportada até ao estádio olímpico, fazendo a sua entrada triunfal na cerimónia de abertura, após terminar o desfile de todos os atletas participantes.
Para a execução da ideia reuniu-se o melhor da indústria alemã: a lente côncava com que se acendeu a chama, com os raios solares, em Olímpia, foi concebida pela Zeiss, enquanto a tocha de 27 centímetros, desenhada pelo escultor Walter Lemcke, foi produzida e fabricada pela Krupp, gigante germânica do aço. Todo o cerimonial do acendimento e do seu transporte foi filmado por Leni Riefenstahl de uma forma absolutamente soberba, criando uma estética que ainda hoje é considerada como uma das melhores peças de propaganda jamais realizadas.
‘Unir os povos no espírito da paz’
Nesta sua estreia olímpica, a tocha foi transportada, ao longo de 12 dias, por 3331 corredores – todos homens! – ao longo de 3187 quilómetros, atravessando os territórios da Grécia, Bulgária, Jugoslávia, Hungria, Áustria e Checoslováquia, até chegar à Alemanha.
O êxito foi total, com milhares de pessoas a aplaudirem a passagem dos corredores a transportar a chama olímpica. E o momento da sua entrada no Estádio de Berlim, a 1 de agosto, constitui, ainda hoje, um exemplo perfeito de como se deve encenar um espetáculo de multidões. Para Carl Diem, o objetivo estava cumprido com a tocha a “representar um vínculo real e espiritual entre a pátria alemã e os lugares sagrados da Grécia, fundados há quase 4 mil anos, por imigrantes do Norte”.
A verdade é que, mesmo depois de despida dessa simbologia nazi, o transporte da chama olímpica passou a ser um dos rituais mais aclamados do olimpismo.
No Brasil dividido, pode ser que a tocha cumpra também uma das promessas proferidas, de forma solene, nos Jogos de Berlim: “unir os povos no espírito da paz”. O autor da frase foi Adolf Hitler e o mundo descobriu depressa a falsidade das suas palavras. Mas também a verdade é que a criatura saiu-se muito melhor do que o seu criador.
Nota: A principal fonte deste texto foi o livro “Berlin Games – How The Nazis Stole the Olympic Dream”, de Guy Walters, publicado em 2006 pela Harper Perennial
Correção: O ano dos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna foi corrigido para 1896