Na sua primeira conferência de imprensa depois das eleições de novembro, esta segunda-feira em Mar-a-Lago, Donald Trump meteu-se atrás de um microfone para dizer que “há que endireitar a imprensa”. Isto porque “temos uma imprensa muito corrupta, quase tão corrupta como as nossas eleições”. Aqui temos os dois grandes inimigos de um líder autoritário – imprensa e eleições –, apontados sem pudor no regresso ao poder. O drama destes tempos em que vivemos é que este é um combate tristemente desigual.
Donald Trump enunciou as armas que usará contra a comunicação social, os processos judiciais, mas tem outras bazucas, as grandes empresas de tecnologia, a seu favor. Quanto aos processos, são já mais do que suficientes para lançar o medo em empresas que, todos sabemos, estão financeiramente frágeis. Sim, mesmo nos Estados Unidos da América, como em Portugal, a viabilidade económica da imprensa tem sido um labirinto difícil de percorrer (só no primeiro semestre deste ano, mais de 2 500 jornalistas perderam o seu posto de trabalho nos EUA).
O jornalismo não é um espaço em roda livre, propício a ser ele próprio o manipulador da verdade – existem regras com as quais se cose, erros que devem ser assumidos, cabendo também ao leitor o papel de distinguir o trigo do joio. Mas de todos os ataques que tem sofrido, talvez o pior venha da autocensura, resultado do medo de vir a perder dinheiro em processos judiciais – como poderá ser livre e irrequieto, vigilante e atrevido?
O que tem feito Donald Trump? Muito. Ainda esta semana, a cadeia de televisão ABC chegou a acordo com ele para o indemnizar em 15 milhões de dólares (que serão entregues à biblioteca de Trump) porque o pivô George Stephanopoulos disse em direto que o Presidente eleito tinha violado a escritora E. Jean Carroll. E. Jean sempre acusou Donald Trump de a ter violado na década de 90, mas, em maio de 2023, Trump foi condenado mas por abuso sexual, não por violação. Um tribunal condenou-o a pagar cinco milhões de dólares por abuso sexual e difamação. Já este ano, o valor foi corrigido para 83 milhões de dólares por um tribunal federal.
Mais processos contra a comunicação social correm. Contra a CBS por ter entrevistado Kamala Harris; contra a CNN por alegadamente o ter comparado a Hitler (processo já arquivado); contra o Des Moines Register, por ter previsto que Kamala Harris iria ganhar as eleições (este processo foi anunciado). E, na conferência de imprensa de segunda-feira, Donald Trump ainda recordou outros que moveu, incluindo contra o lendário Bob Woodward, jornalista do Watergate.
Porque gostam os líderes populistas de afrontar a imprensa livre em vez de a tentar seduzir? Sempre foi assim e agora é muito mais fácil impor narrativas paralelas, não verificadas, através das redes sociais. A imprensa é um empecilho com os seus fact checks e a sua mania da verdade e do contexto histórico.
E Donald Trump tem Elon Musk, “uma personalidade comparável aos grandes barões da imprensa do final do século XIX, começo do século XX, que interferem totalmente no conteúdo e que têm posições políticas muito claras”, como o descreve o jornalista e académico brasileiro Carlos Eduardo Lins da Silva.
Trump tem a Amazon, a Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), a OpenAI… as grandes tecnológicas ao seu serviço, todas as citadas a anunciar grandes doações financeiras. A imprensa livre é uma chatice, uma pedra no sapato. E tão frágil já, remetida ao papel de resistente, que nem parece um alvo impossível de abater. Não será? Cá estaremos para dizer.
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