A Ucrânia é-nos hoje um país familiar. Percebemos melhor a sua geografia, vemos todos os dias a destruição e morte que grassa nas suas ruas, habitações, monumentos e praças, outrora bonitas e pujantes, e assistimos, impotentes, à humilhação e fuga de milhões de cidadãos ucranianos vítimas da louca petulância de um ditador sem rumo, cada vez mais isolado, mas que reverbera no erro e no seu instinto de indiferença e crueldade perante tanto sofrimento, imposto gratuitamente e sem qualquer justificação.
Proponho aos leitores, e em homenagem ao povo ucraniano, uma análise sobre o seu sistema de saúde que, no meio de uma histórica falta de recursos, tinha encetado em 2017 um processo profundo de reformas nas diferentes áreas de prestação de cuidados, algumas delas excelentes exemplos, mesmo para nós portugueses.
A Ucrânia é ainda um país com baixos recursos no contexto europeu. Dispõe anualmente de pouco mais de 9.200 USD per capita, que comparam com 33.400 em Portugal ou 34.500 na média da Região Europeia (2019). O seu crescimento económico foi em 2015 negativo (-9%), mas iniciou em 2016 uma trajetória positiva, com um crescimento sempre superior a 3% e muito perto dos 4% em 2018.
Nas despesas de saúde, os gastos totais em 2015 representaram cerca de 150 USD per capita (perto de 2.200 em Portugal), sendo 54% despesas “out –of –pocket”, ou seja pagas diretamente pelos doentes. Na média europeia este valor era apenas de 27% e em Portugal de cerca de 33%. Importa perceber que esta forma de suportar despesas de saúde pode representar uma enorme iniquidade no acesso, pois só os cidadãos com mais rendimentos têm capacidade de pagar diretamente do seu bolso a utilização dos serviços médicos (sobretudo em doença grave), por definição imprevisíveis e caros.
Nos principais indicadores de saúde a situação da Ucrânia retrata as dificuldades financeiras e de recursos clínicos que o país vive: a) a esperança de vida à nascença é de 73,3 anos que compara com 81,6 em Portugal e 78 anos na média europeia. Curiosamente, a Federação Russa apresenta para o mesmo ano (2018) um valor ainda mais baixo – 71,0 anos; b) a taxa de mortalidade infantil era, em 2018, de 7,7 óbitos por mil recém-nascidos até um ano de idade, que comparam com 2,7 em Portugal e 6,9 na média europeia (Rússia, pior, com 8,2); c) a mortalidade por doenças circulatórias é das mais elevadas da Europa, com 587,0 óbitos por cem mil habitantes (137,5 em Portugal); d) a incidência do HIV é também muito elevada, com 35,3 casos por cem mil habitantes (2018) que comparam com 9,5 em Portugal ou 15,9 na média da Região Europeia (Rússia pior com 58,6); e) os anos de vida saudáveis à nascença de um cidadão ucraniano eram, em 2016, 64, em Portugal mais 8, na média europeia mais 5 e na Federação Russa menos 0,5; f) a incidência do cancro por cem mil habitantes era, em 2018, de 141,7, mais baixa que em Portugal (154,0) e na Rússia (171,2) mas mais elevada do que a registada na média da Europa (114,2).
A Ucrânia dispunha, em 2015, de 300 médicos por cem mil habitantes contra 443 em Portugal, 321 na Europa e 331 na Rússia. Quanto aos enfermeiros, o ratio era então de 668 por cem mil habitantes, 638 em Portugal, 741 na média europeia e 457 na Rússia. Como iremos constatar não era, quanto aos recursos humanos, uma situação dramática no contexto europeu, pelo contrário, os números sugerem alguma suficiência de meios nestas duas áreas profissionais.
Com a independência ocorrida em 1991, esperar-se-ia que a Ucrânia entrasse rapidamente na senda do desenvolvimento. Mas não foi isso que ocorreu, com graves problemas internos de segurança, movimentos pró-russos em pressão e guerra constante e reflexos da tentativa permanente da interferência russa, nunca satisfeita com a nova ordem internacional resultante da queda do império soviético. As estruturas de saúde herdadas da era soviética revelavam-se inadaptadas aos novos desafios da ciência e da tecnologia médicas e eram geridas como repartições administrativas onde imperavam a corrupção e o compadrio. As escolas médicas eram subfinanciadas com frequentes faltas de equipamentos. Os medicamentos eram escassos e sem atualização. As remunerações dos profissionais eram muito baixas e só os pagamentos “under the table” e o trabalho em vários estabelecimentos, em simultâneo, os mantinha controlados. O sistema de saúde, então objeto de uma alteração dramática do financiamento, que passou a dispor de seguros comerciais de saúde em concorrência e menor financiamento direto do Estado, estagnou durante anos e os serviços perderam a pouca qualidade que tinham.
Os tumultos registados em 2014 e a instalação de um governo legítimo e fora da alçada de Moscovo permitiram encetar um processo sustentado de reformas na saúde com o apoio do Banco Mundial e da OMS. Em 19 de outubro de 2017 o Parlamento ucraniano aprovou uma nova Lei para o financiamento da saúde – “Government Financial Guarantees of Health Care Services” – e em dezembro do mesmo ano foi criado o “National Health Service Ukrania” (NHSU), com autonomia e competências de planeamento e gestão de todo o sistema de saúde. Este passou a ter orçamentos autónomos do orçamento do Estado, devidamente negociados com as Finanças, e transformou-se no “single payer” do sistema de saúde na esfera pública.
A estratégia de intervenção do NHSU tinha dois eixos prioritários: introduzir mudanças nos cuidados primários, até aí entregues a centros de saúde dispersos e burocratizados; reformar os hospitais, estruturas antiquadas, em número excessivo, com camas a mais e subaproveitadas.
- Cuidados de saúde primários
O NHSU, com o apoio do governo e do parlamento, iniciou em 2018 um processo geral de contratação de unidades de prestação de cuidados primários (os antigos centros de saúde e prestadores privados) com base num compromisso entre o cumprimento de um conjunto de indicadores de volume e qualidade, e o pagamento de um valor capitacional por cidadão inscrito. Este processo correu muito bem, pois 97% dos prestadores públicos estabeleceram contratos com o NHSU, bem assim como todos os prestadores privados. Os cidadãos puderam então escolher o seu médico de família. Em fevereiro de 2019 mais de 26 milhões de ucranianos (mais de 60% da população) tinham já escolhido o seu médico de família, podendo todavia mudar de médico a qualquer momento. Cada médico poderia inscrever até 1800 utentes e foi definido um “package” básico de serviços e de benefícios a que cada inscrito passou a ter direito (prevenção,vacinação,intervenções de emergência, assistência técnica para o HIV, hepatite, tuberculose, resistência antimicrobiana, cuidados de medicina geral, maternidade, pediatria e reabilitação).Os medicamentos, outrora pagos pelos utentes, passaram a estar incluídos na capitação, através de uma lista positiva, limitada, de fármacos considerados essenciais e para os quais a entidade prescritora passou a dispor de verbas próprias, cabendo ao utente, nalguns medicamentos, o pagamento de uma pequena percentagem do valor. A lista positiva incluiu 258 fármacos, 64 dos quais gratuitos. O NHSU estabeleceu contratos com mil farmácias das quais, cerca de 600, do setor privado. Trabalham hoje nos cuidados de saúde primário ucranianos, 22 mil médicos, 4200 pediatras e mais de 3300 terapeutas de diferentes áreas. A média de utentes por médico de família é de 1255, um excelente valor no contexto internacional. Mais de 70% dos utentes estão satisfeitos ou muito satisfeitos.
- A reforma dos hospitais
Será um processo bem mais complexo mudar a filosofia de trabalho dos hospitais. A Ucrânia dispõe de cera de 1500 hospitais, pertencentes a vários ministérios e serviços do Estado (Saúde, Interior, Serviços de Segurança do Estado, Academia Nacional das Ciências, clínicas e hospitais para funcionários públicos, etc.) e reservados aos respetivos grupos profissionais. Ninguém quer abdicar dos seus serviços e todos têm problemas de excesso de oferta, desperdício e baixa produtividade. Mas também apresentam instalações degradadas, tecnologia obsoleta e redundâncias entre concorrentes, que retiram eficiência e eficácia ao sistema. A rede hospitalar é regionalizada, sob a responsabilidade política dos líderes regionais e municipais e apresentam formas de financiamento mais ou menos privativas e sem critério. Os profissionais de saúde estão maioritariamente nos hospitais, em número excessivo para o que fazem e os gastos com remunerações, embora com salários baixos, representam cerca de 65% do total da despesa pública em saúde. O sistema de saúde ucraniano é essencialmente suportado pelos hospitais, numa cultura hospitalocêntrica que se cristalizou ao longo dos anos.
A Ucrânia apresenta um ratio anual de perto de 20 internamentos por 100 habitantes, contra 12 ou 13 na Suécia e no Reino Unido. Muitos desses internamentos não seriam necessários, podendo os casos ser resolvidos em ambulatório. O nível de intervenção cirúrgico é muito baixo, com apenas 24% de doentes hospitalizados operados, contra mais de 50% em Portugal ou 70% noutros países europeus. Os doentes têm que pagar do seu bolso os medicamentos consumidos que lhe são administrados nos hospitais e pagam aos médicos, enfermeiros e outros profissionais, “tarifas” “under the table” para passar à frente e ser melhor tratados.
Uma das prioridades do atual governo e do NHSU é portanto reformar o setor hospitalar, seguindo vários caminhos: reduzir o número de camas e de hospitais, promover a rentabilidade das camas, modernizar instalações e equipamentos, aumentar as remunerações dos profissionais (os salários dos trabalhadores da saúde são 35% mais baixos face a um trabalhador ucraniano médio). Para isso arrancou em Poltava, em 2019, uma experiencia –piloto com um novo modelo de financiamento para os hospitais: orçamento global retrospetivo para 60% dos custos anuais e uma nova linha de pagamento por volume e qualidade (40%) associada à complexidade da casuística, através da aplicação de um sistema de classificação de doentes – os DRG (Diagnostic Related Groups) – em que os doentes internados são pagos pela complexidade e gravidade do episódio, para 50 grupos de doenças (numa primeira fase). Este modelo, internacionalmente aplicado com sucesso, é também o que utilizamos em Portugal há 3 décadas.
Não temos dúvidas de que as reformas pensadas e já em curso na Ucrânia, poderão ser uma alavanca preciosa para incrementar o acesso dos cidadãos e a qualidade e a eficiência do sistema de saúde. Combinam o financiamento público via impostos (que pretende garantir equidade) com formas de contratualização que cultivam a competição entre diferentes prestadores e privilegiam os cuidados primários e a racionalização da oferta hospitalar. O apoio de entidades com muito conhecimento e experiência internacional, como são o Banco Mundial e a OMS, serão a garantia do sucesso destas transformações.
Por enquanto, e face à guerra que inopinadamente se instalou, estas reformas aguardam melhores dias, mas esperemos que possam ser retomadas em breve. Representarão com certeza mais e melhor saúde para os ucranianos. Tenhamos esperança e manifestemos a nossa solidariedade na luta e nos dramas que aquele povo está a viver.
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ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DO SARS- CoV-2 (105ª semana: 27 de fev a 5 de março 2022)
Na passada semana os indicadores continuaram a descer em todas as dimensões de análise. As descidas mais expressivas foram na atividade hospitalar (18% no internamento e 13% nas unidade de cuidados intensivos). O número de óbitos baixou 12% cifrando-se nos 26 por dia em termos médios. O número de novos casos continua a diminuir, mas agora com uma evolução mais lenta (-3,4%). O índice global baixou para o nível moderado, pela primeira vez desde a semana terminada a 8 de janeiro.
. ÍNDICE: 1,718335 (risco moderado)
. TENDÊNCIA: descida
. COR DO SEMÁFORO: laranja
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes em UCI
. DIMENSÃO PIOR: positividade dos testes
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.