Depois da surpresa da maioria absoluta do PS e das interpretações dos comentadores, politólogos e especialistas de sondagens, chegou a hora de começar a pensar na capacidade de um governo novo, liberto da pressão da geringonça, mas também de uma direita mais liberal e menos propensa à solidariedade social. As necessidades de reforma estarão na ordem do dia em múltiplos domínios e será esta a nova pressão que cairá sobre os ombros de António Costa, já para a formação do novo governo.
A saúde tem sido um território central no debate político, designadamente com a crise pandémica que vivemos. As veleidades de alguma direita em privatizar os cuidados de saúde e o financiamento do sistema caíram fragorosamente, pelo que o próximo governo estará concentrado na gestão do SNS e na melhoria do seu funcionamento.
Não creio que as questões da saúde devam ter uma abordagem avulsa, tentando resolver este ou aquele problema, com medidas pontuais ou de natureza administrativa. O grande desafio do governo será mesmo empreender uma reforma global do SNS, mantendo os alicerces dos seus valores constitucionais, mas encarando com coragem e sentido estratégico, os estrangulamentos, as ineficiências e as faltas de resposta.
Passarei em revista alguns temas que poderão constituir o foco de uma reforma na saúde:
- Uma nova política na gestão dos recursos humanos
É um tema nuclear porque tem um impacto sistémico em todas as vertentes do SNS (acesso, eficiência, efetividade, qualidade, custos e satisfação). O modelo de carreiras da administração pública já demonstrou a sua inadequação às exigências da saúde. Devem ser criadas novas carreiras, baseadas no mérito do trabalho e da dedicação diária, e novos modelos remuneratórios, variáveis em função de incentivos, assentes na qualidade e volume do trabalho realizado. Todas as profissões de saúde devem ter carreiras próprias e especiais face ao comum da administração pública. Deve promover-se a plena dedicação dos profissionais, na medida do interesse público e das necessidades das instituições e não apenas de acordo com a vontade individual de cada profissional. Deve proceder-se à revisão urgente dos salários nas profissões de saúde, subindo significativamente nos valores-base, admitindo uma carga semanal acrescida (para as 40 horas em todas as profissões) e apostando de forma consistente em incentivos e prémios de desempenho.
Na área médica, onde muito se fala sobre a falta de profissionais, há medidas imediatas que deverão ser tomadas: a) aumentar a disponibilidade de médicos de família, suspendendo (apenas para efeito de contagem) das listas de cada médico os 30% que correspondem, em média, aos utentes inscritos que nunca o procuram (cf. relatórios anuais do acesso da ACSS). Deste modo, libertaríamos a oferta de médico de família para mais de 2 milhões de portugueses, valor que chegaria e sobraria para abranger toda a população em falta; b) aumentar a disponibilidade dos médicos hospitalares para o exercício em serviços de urgência, alargando para os 60 anos a idade para exercício diurno e para os 55 anos para exercício noturno; c) considerar o alargamento de horários de trabalho aos médicos que se mostrem disponíveis nas respetivas instituições, com idêntico acréscimo remuneratório, reduzindo de forma correspondente as empresas de trabalho temporário; d) regressar, na formação médica, aos princípios do trabalho médico à periferia, como forma de distribuir melhor estes profissionais pelo território nacional, criando linhas de fixação do trabalho médico fora dos grandes centros urbanos e respondendo convenientemente à falta de médicos nas zonas carenciadas.
- Promover a integração dos cuidados
A realidade demográfica obriga-nos a repensar com urgência o modelo de cuidados que se tornou padrão: forte institucionalização, cuidados primários de um lado, hospitais de outro lado, cuidados continuados de um outro ainda. Raramente se contactam e são territórios clínicos independentes. Esta situação não permite acompanhar convenientemente os doentes mais idosos e com multipatologia crónica, que acabam por ser drenados para as urgências hospitalares em situações de grande carência assistencial. Esta integração não é fácil, mas nada melhor do que um governo com poder e determinação para encetar o diálogo com todos os intervenientes para desenvolver uma estratégia de aproximação, consolidar modelos de trabalho multidisciplinar, consultas ombro a ombro, visitas domiciliarias conjuntas, internamentos a partir do domicílio do doente, marcações de consultas e exames pelo médico de família,etc. Deveríamos reduzir em 20%, no primeiro ano de governação, a procura inapropriada de urgência, que se estima, por baixo, ser na ordem dos 2,8 milhões de observações por ano. Se em 2022/23 conseguirmos reduzir esta procura em 560 mil pessoas e dar-lhes uma resposta atempada e competente em cuidados primários, será um bom resultado, a aprofundar nos anos seguintes.
- Revisitar as USF
As Unidades de Saúde Familiar são genericamente consideradas um grande avanço organizacional nos cuidados primários. O próximo governo prepara-se, aliás, para alargar o modelo a outros centros de saúde. Não deverá, todavia, fazê-lo sem revisitar, sem preconceitos, os sucessos e insucessos das USF. Há sinais que mostram várias falhas no trabalho dos médicos de família, em que estas unidades também se inserem, mesmo em comparação com as que funcionam em modelo tradicional (ACSS, Relatório do Acesso, 2021): só 22% dos utentes inscritos com hipertensão arterial são adequadamente acompanhados, apenas metade dos utentes têm a sua consulta realizada no dia do agendamento (um sinal claro de falta de compromisso), mais de 30% dos utentes inscritos não frequentam os respetivos médicos de família, numa prova evidente de desinteresse e falta de confiança, as urgências hospitalares continuam cheias de casos simples, com muitas dessas pessoas com médico de família atribuído. Ou seja, as USF, que deveriam ser proactivas e funcionar como “gate keeper” do acesso a cuidados de saúde mais especializados, não têm cumprido a sua tarefa básica, contribuindo, pelo contrário, para congestionar os hospitais, aumentar os custos do sistema e fazer baixar a qualidade dos serviços, que passam a ser “adhoc”, sem programação e sem personalização. É bom não esquecer que as USF representam acréscimos significativos de despesa, mormente em remunerações adicionais, pelo que os seus resultados teriam que ser particularmente melhores, o que parece estar longe de acontecer.
- Investir nos cuidados continuados de proximidade
Os cuidados continuados necessitam de ver alargadas as suas estruturas de apoio. Não só em camas, mas sobretudo em profissionais, meios de mobilidade e de monitorização. Os cuidados continuados prestados no domicílio ou em área de dia são os mais eficazes, porque permitem manter o doente no seio da família, fazendo-lhe chegar os recursos de que diariamente necessita (vigilância clinica, tratamento, reabilitação, apoio nas atividades da vida diária,etc.) e contribuindo, assim, para a mais rápida reintegração social. A cooperação entre a Segurança Social, a Saúde, as autarquias, as IPSS, as famílias e os cuidadores informais é, nesta matéria, crucial, com uma visão muito mais comunitária do que institucional das necessidades dos utentes.
- Investir na digitalização do SNS
O SNS mostra um significativo atraso na era da digitalização face ao que sucede noutros setores da vida pública e, sobretudo, na comparação com os serviços de saúde privados. O PRR prevê gastar uma verba próxima dos 300 milhões de euros no digital na área da saúde. Vamos ver como isso se passará, mas há um conjunto de desígnios estratégicos que o governo deve privilegiar: a) a existência de um processo clínico único e universal para cada doente, interoperativo entre todas as unidades e prestadores do SNS e na interseção com os prestadores privados convencionados. Só assim conseguiremos criar uma dinâmica de continuidade de cuidados que permita integrar a informação clínica e tomar, em cada momento, as melhores decisões. Reduzem-se os tempos mortos, os exames repetidos, a falta ou excesso de medicamentos, os tempos preciosos para o início de uma terapêutica; b) o aprofundamento das consultas em remoto, com meios de diagnósticos disponíveis à distância, com alta definição e resultados robustos; c) o acesso fácil e imediato a marcações de consultas e exames a partir de qualquer local e a qualquer hora, o que muito irá facilitar a via sacra porque passam vários doentes para irem marcar, em filas intermináveis e às horas mais adversas, os serviços de que precisam; d) o acompanhamento e monitorização, em tempo real, de muitos doentes sediados no domicílio (também em ERPIs) com controlo das funções vitais, utilização de meios de suporte respiratório, cumprimento de prescrições,etc.
- A eficiência dos hospitais
Os hospitais são o setor do SNS que concentra a grande maioria dos recursos e produz 54% das despesas do SNS. Têm excelentes profissionais nas diferentes funções (médicos, enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, farmacêuticos, assistentes sociais, etc.) com conhecimento atualizado e muita experiência. São, por isso, fonte de recrutamento preferencial do setor privado e não têm meios para segurar os seus quadros mais destacados. Também por isso, têm a sua atividade fortemente reduzida ao longo do dia, com a concentração dos profissionais de manhã e a parte da tarde destinada, em grande parte, às urgências, internas e externas, e algumas consultas pontuais. Os seus equipamentos apresentam, assim, uma utilização baixa, que no caso dos blocos operatórios significa uma taxa de desocupação perto dos 60% (entre salas fechadas e salas a funcionar apenas até a 14:00h). As listas de espera sobem sem cessar, porque as administrações se sentem impotentes para impor novos horários, com desfasamento e potencial de funcionamento até às 18/19 horas nos dias úteis e aos sábados de manhã, como qualquer português pode encontrar num grupo hospitalar privado. Os internamentos são, assim, mais prolongados e a cirurgia ambulatória é travestida de internamento de um dia face às dificuldades operacionais de poder ter essas unidades a encerrar às 20/21 horas, com a alta dos últimos doentes do dia.
Pôr os hospitais do SNS, agora que os bons exemplos das PPP acabaram, a competir com os hospitais privados é, por isso, uma tarefa insana, em que as administrações percebem muito bem quais são os constrangimentos mas, simultaneamente, se sentem, em parte, impotentes para os resolver. Se o Governo conseguir dotar a gestão dos hospitais de ferramentas efetivas de autonomia, na definição de modelos de incentivos, na seleção dos mais competentes e dedicados, na promoção de melhores condições de trabalho, motivadoras mas responsabilizantes, a capacidade de resposta dessas instituições poderá aumentar significativamente e sem o recurso a mais profissionais. A aparente indiferença, perante a ineficiência, o desperdício e as listas de espera é que não pode continuar. Os doentes têm direito a uma resposta. Estamos perante um bem público inadiável.
Que este mapa cor-de-rosa não passe de uma efémera ilusão, como a que ocorreu nos finais do século XIX e logo interrompida pelo ultimato inglês….Estamos num tempo de esperança.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS-CoV-2 (101ª semana:30/01 a 05/02/2022)
Desde a 95ª semana (19 a 25 de dezembro) que vínhamos assistindo a um agravamento constante do Índice de Risco. Esta última semana representou uma inversão nesse percurso, fruto da diminuição no número de novos casos, pela primeira vez, após 17 semanas consecutivas de crescimento (desde 4 de outubro passado). Os especialistas referem que teremos já atingido o pico desta vaga pandémica e esta evolução parece querer confirmá-lo.
. ÍNDICE DE RISCO: 4,31918
. TENDÊNCIA: descida
. COR DO SEMÁFORO: vermelho
. DIMENSÃO PIOR: número de novos casos
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes em cuidados intensivos
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.