Leituras e releituras recentes fizeram-me tropeçar em similitudes talvez não inesperadas. Eis duas citações.
“Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o Homem. Enquanto uma parte da Humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada, e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados. Que diz isto a respeito da igualdade dos direitos fundamentais na mesma dignidade humana?”
“As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica Humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta, para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.”
Os textos são um de José Saramago, do discurso no Banquete Nobel, em 10 de dezembro de 1998, data em que se assinalavam 50 anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o outro do Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti, dada em 3 de outubro de 2020. Os conhecedores dos textos saberão de quem é qual. Aos restantes não o revelo; é fácil encontrá-los e descobrir. Talvez se surpreendam.
Trago estes textos por duas razões fundamentais. A primeira, essencial, é que o combate às injustiças não pode deixar de ser parte integrante (e fundamental) da vida e da ação de homens e mulheres que se sentem comprometidos com o progresso e a igualdade. Na espuma dos dias e na vertigem da comunicação global, cada vez mais monocromática e manipuladora, empurram-se os seres humanos para o individualismo, a indiferença, o conformismo e a resignação. Não é disso que precisamos.
Querem que esqueçamos o fundamental: que precisamos de garantir o respeito pelos povos e pelos seus direitos, de construir um sistema económico e social que vise o progresso geral da Humanidade e não um fosso cada vez maior entre ricos e pobres. Um modelo que não seja “fundado no lucro” nem que seja “indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome”.
Problemas que existem também no nosso país, em que continuamos a ter centenas de milhares de homens, mulheres e crianças na pobreza, incluindo muitos trabalhadores que, por terem baixos salários, empobrecem a trabalhar; em que as desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres se mantém acentuadas; em que setores estratégicos para a vida das pessoas e o desenvolvimento do País se encontram nas mãos de poderes económicos nacionais e estrangeiros, com os seus objetivos próprios, que penalizam todos os portugueses.
A segunda razão é que, sem prejuízo de contradições e naturais desacertos, não existe, em muitas questões fundamentais, um muro intransponível que separe a convergência de gente com e sem religião, com e sem partido, mas comummente comprometida com o progresso e a democracia. Assim o registava Álvaro Cunhal, em 1946, no IV Congresso do PCP: “aquilo que nos separa nada é comparado com o que nos une. Todos os portugueses e portuguesas honrados, sejam comunistas, católicos, republicanos, socialistas, monárquicos ou sem partido, estão interessados em que Portugal seja liberto do fascismo e encaminhado para a democracia”.
Quando essa convergência aconteceu, avançámos sempre. É disso que precisamos, também nos dias em que vivemos: que convirjamos na luta por um emprego estável, com direitos e com um salário justo; que a habitação não seja um negócio mas um bem essencial a uma vida digna; que a saúde, a educação e a proteção social sejam de acesso universal; que os mais velhos sejam defendidos e protegidos; que haja progresso e desenvolvimento sustentável.
Perdoem-me, uns e outros, Saramago e Francisco e todos quantos os admiram, a heresia de os juntar. Lendo os textos, tornou-se inevitável. O mundo avança quando se juntam os que o querem fazer avançar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.