No final do século XIX, as Exposições Universais marcavam de forma quase ideológica a vitória da ciência e da tecnologia. Eram avassaladoras as descobertas científicas e as capacidades técnicas levadas a limites inimagináveis. À sombra da Torre Eiffel, mostravam-se orgulhosamente as últimas descobertas, as mais importantes invenções.
O século XX apenas veio confirmar este ritmo e esta eficácia incessante de invenções, de novas tecnologias. A Medicina foi, entre outros, um campo, não apenas de grandes inovações, como o de maiores e mais democráticas aplicações. Quem disto tenha alguma dúvida que seja, basta olhar rapidamente para uma lista das principais descobertas médicas do século XX. No limite, para muitos de nós, basta atentar para a nossa própria história de vida e perceber, humildemente, que não estaríamos vivos sem ela.
Mas esta evidência que nos parece tão natural, está a viver tempos de duros golpes. E recebe-os exatamente através da dimensão da evidência, do senso comum. Contudo, há claramente dois universos onde esta questão se joga de forma bastante diferente: os EUA e a Europa.
Desde que trabalho em Ciência das Religiões que a lógica de argumentação religiosa se tornou num dos meus campos de trabalho mais inquietante. Como se construiu, por exemplo, uma narrativa anti ciência nos meios evangélicos norte americanos? Mais, se é hipoteticamente mais fácil perceber como esta narrativa vingou nos meios menos escolarizados do Brasil, essa não parece ser, num primeiro momento, a justificação para que esse fenómeno se tenha enraizado tão fortemente nos EUA.
De facto, desde o século XIX que setores politicamente muitos fortes nos EUA são em absoluto contra o pensamento científico e contra uma sociedade cada vez mais liberalizada. Alguns dos movimentos religiosos que nasceram com essa narrativa fizeram uma evolução muitíssimo grande e hoje não defendem nem incutem essas visões radicais. Mas muitos exacerbaram essa postura nas últimas cinco dezenas de anos, criando, por exemplo, um fortíssimo movimento defensor do criacionismo, negando por completo o evolucionismo.
Mais que muitos milhões de norte americanos terem crescido a ouvir dizer que o criacionismo é que é correto, ouviram-no em meio escolar, colocado lado a lado com o evolucionismo, como se fosse uma teoria científica de igual valor e natureza.
Parece que parte da sociedade perdeu a capacidade da dúvida metódica e sistemática, tomando o senso comum como saber. Muito pior que ter alguém, por mais que seja o Presidente dos EUA, a proferir afirmações que podem fazer crer que a desinfeção interna do corpo é possível, é haver quem, ao ouvir esta barbaridade, a ache plausível e, imagine-se, o tenha tentado.
O Grau Zero civilizacional foi atingido no seu âmago, naquilo que nos distingue: o conhecimento construído na dúvida e cimentado na experiência e na prova. Há uma larga fatia da população norte americana para quem o valor de uma afirmação de um especialista é igual ao de um rumor na internet. O Presidente eleito por essa mole de gente que despreza a cultura científica é, obviamente, como eles, mas com tempo de antena para difundir as suas alarvidades.
O descalabro é evidente e de estragos para várias gerações, começando pelo grande crescimento do movimento contra a vacinação, alavancado na afirmação da liberdade individual. Hoje, a fratura entre quem segue um pensamento cartesiano e quem segue uma neo-pré-modernidade, é evidente, imensa e cada vez mais inconciliável.
Felizmente, tudo me leva a crer que na Europa a civilização atingiu um ponto de não retorno no que respeita à valorização da ciência. Não só dificilmente veríamos um líder dizer tamanhas barbaridades, como ainda mais dificilmente alguém as tomaria como suficientemente credíveis para as tomar como boas.
Espero eu….